terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Stradivarius



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Trazia um surrado estojo de instrumento musical. Bem menor do que um violão. Vi logo que se tratava de violino e fiquei imaginando o que falar para o músico sobre essa impossibilidade de penhor.
Diante do meu “bom dia” teve algumas incertezas. Segundos em silêncio. Estava indeciso sobre abrir o estojo.
Acabou com o impasse silencioso falando que portava um violino raríssimo. Estava precisando de dinheiro – as contas todas atrasadas e culpou o governador – e para pagar as dívidas trouxe o violino para o penhor da Caixa. Era uma raridade em Santa Maria, talvez o único no Rio Grande do Sul. Avaliado em milhões de reais.
Agora ele vai me dizer que tem um Stradivarius herança do bisavô – pensei.
– Eu trouxe um Stradivarius para avaliação – errei o bisavô.
Se o cara tem realmente um Stradivarius fiquei imaginando qual a desculpa para não aceitar tamanha raridade no penhor. Então, ele me alcançou o instrumento. Comecei a olhar minuciosamente a procura de um “contraste”. Nada que identificasse a origem, a bem da verdade eu não sei se um Stradivarius tem alguma identificação. Mas, de qualquer sorte, procurei...
Era um violino bem judiado. Em alguns lugares estava bastante esfolado pelo uso. Não imagino como seja um Stradivarius, mas aquele violino não era um exemplar feito pela família Stradivari. Se fosse, seria um Stradivarius made in China via Paraguai.  
A minha fisionomia de desapontamento fez com que ele denunciasse a verdadeira história.
– É uma réplica. Mas vale uns 200 mil.
Quem sou eu para discordar. E devolvi o violino dizendo que não penhorávamos instrumentos musicais. 
Então, ele tirou a aliança do dedo.
– Vamos ver se com ela eu consigo a grana pagar a conta da luz. O aviso de corte já chegou.
Para sorte do vivente e para não estragar meu dia o penhor quitou a conta da luz. E sobrou grana para um cafezinho no Copacabana.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Uma loira no penhor



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Que culpa tem uma jovem loirinha que chega cheia de dúvidas no penhor? Claro, ela desconhece que é o primeiro dia de retorno das férias do avaliador e que uma segunda-feira sempre o andamento é diferenciado. O dado favorável era o meio de mês e o penhor não é o local mais tumultuado de uma agência bancária. Então, não culpemos a segunda-feira e a volta das férias. Prefiro uma conjunção de astros.
Uma simpática loirinha de cabelos lisos posta-se em minha frente portando dois contratos de penhor com vencimentos para trinta e sessenta dias, respectivamente. Imaginei um atendimento simples e sem rodeios. Tiro dado, bugio deitado. Como diz o grosso de Bagé. Mas as coisas não são como imaginamos.
Chamava-se Maura, Maurinha para os amigos e já me enquadrou como amigo. E comentou que desejava renovar os contratos da mãe. Ela, apenas, emprestava o nome, pois dona Matilde não podia sair de casa. Estava se recuperando de um grave acidente de carro.
Obviamente, expliquei que não havia necessidade de renovação porque os contratos não estavam vencidos. Tudo em dia e com prazo para abril e maio. Mas ela insistiu: queria quitar um dos contratos e refazer um novo penhor, com o dinheiro desejava quitar a outra dívida. Quando ela falou isso percebi que a conversa seria complicada. Esse jeitinho não se enquadra nos juros, taxas e empréstimos bancários. Então, comecei a explicar que ela tinha duas dívidas e não havia como fazer mais dinheiro com as mesmas joias de um mesmo contrato para quitar o outro. Pelo olhar dos olhinhos verdes e do beicinho caído de Maurinha, foi fácil perceber que ela não havia entendido nada. Refiz a explicação com um pouco mais de didática, mas tudo foi em vão. O penhor não era o mundo de Maurinha.
– Posso ligar para minha mãe? – e foi digitando o número no celular.
O diálogo de Maurinha com a senhora sua mãe foi algo de invejar algum ficcionista de literatura fantástica. Resumo da ópera: me alcançou o celular para que eu falasse com a verdadeira dona das joias.
– Ë o moço do penhor? – são nessas horas que fico lisonjeado. A palavra moço tem essa capacidade.
– Sim, o que a senhora deseja fazer?
Logicamente que fiz toda a explicação feita à Maurinha. E, logicamente, a mãe de Maurinha também não entendeu.
– O senhor pode falar com o meu marido, ele pode explicar melhor o que desejo fazer no penhor.
– Claro.
Alguns segundos se passaram e uma voz grave atende.
– É do penhor?
– Sim, Caixa Federal, penhores. O que o senhor deseja?
Mais uma vez refiz a explicação acerca dos contratos e conclui dizendo que a melhor maneira seria não fazer nada, salvo se quisessem resgatar, inclusive teria um desconto no juro pelo pagamento antecipado.
– O senhor pode passar o celular para a minha filha?
– Claro – e alcancei o celular à Maurinha. E comecei a contar os 150 botões de uma imaginária bombacha.
– Mãe!
Novamente passaram-se alguns segundos e a loirinha não se conteve.
– Pai!
Comecei a divagar.
Quando a coisa não anda, a melhor maneira de encarar é abster-se da coisa. Olhar a coisa de um outro modo e, se possível, de um outro mundo. Distante. Então, fiquei imaginando quem seria o autor da frase “para que simplificar se a gente pode complicar”. Ou então, como seria uma reunião da família para discutir o roteiro de uma viagem...
– Moço! Moço! – voltei à Terra nesse instante.
– Hein!
– Eu volto amanhã...
Foi nesse momento que verifiquei meu saldo de Ausências Permitidas de Interesse Particular. Santa Apip!

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Dona Dilmarina no penhor



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

A senhora Dilmarina é cliente do penhor muito antes desses confrontos eleitorais pela disputa para presidente. Mas nos últimos tempos é motivo de gracejos, pois carrega no primeiro nome os nomes das duas candidatas a presidente do Brasil. Ela é daquelas clientes simpática que gosta de uma conversa. Mora sozinha num amplo apartamento no centro da cidade e é temente a Deus. Chega na agência – ela faz um périplo nas gerências, habitação e penhor – nos horários de pouco movimento e, com isso, a prosa fica espichada. Claro, o assunto nos diversos setores é em quem a senhora Dilmarina votará.
– Se eu morrer, como ficam as minhas joias? – ela estava dramática naquele dia.
– Calma a senhora tem muito tempo de vida, ainda vai votar em muitas eleições.
– Nem sei se vou votar esse ano, não sou obrigada.  
Então, expliquei a situação dizendo que os herdeiros precisavam quitar a dívida e encaminhar um alvará judicial. Dona Dilmarina Lucinha Souto Menor [esse o nome completo] comentou que vivia sozinha, nunca se casara e não tinha filhos. Tinha uma irmã a Maridilma, mais velha e viúva que mora em Garibaldi. E falou que pretendia resgatar as joias antes de partir – com o dedo indicador apontou para cima – para não deixar dívidas para a irmã.
Dona Dilmarina deixava as joias no penhor, apenas, para guardar, levava o empréstimo mínimo. Usava como cofre de aluguel. A violência da cidade a deixava amedrontada e pouco saía de casa. Mas toda vez que saía de casa executava uma simpatia antes de fechar a porta do apartamento. Chaveava e deschaveava – como ela falava – a porta, três vezes. Virou-se de lado em pé diante do guichê e com uma chave imaginária diante de uma porta imaginária rodou a chave três vezes.
– Meu bom senhor Jesus Cristinho, guarde bem a minha casinha. Me leva e me traz. Me leva e me traz. Me leva e me traz. – abriu a fechadura imaginária e fechou.
Olhou para mim, e sorriu.
– Meu bom senhor Jesus Cristinho, guarde bem a minha casinha. Me leva e me traz. Me leva e me traz. Me leva e me traz. – abriu a fechadura imaginária e fechou.
Olhou para mim, e sorriu.
– Meu bom senhor Jesus Cristinho, guarde bem a minha casinha. Me leva e me traz. Me leva e me traz. Me leva e me traz. – abriu a fechadura imaginária e fechou.
Olhou para mim, e sorriu.
Fiquei me imaginando abrindo e fechando a porta da garagem três vezes antes de sair. E o cofre, então, com retardo de 10 minutos: meia hora para abrir.
Deu um tchauzinho e saiu. Virou-se e falou.
– Ah! Eu me chamo Dilmarina, mas voto no Aécinho, que homem bonito!
O que que eu vou dizer lá em casa...
– Mas a senhora não é obrigada... Ela nem ouviu.

sábado, 9 de agosto de 2014

O cão francês



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

O ambiente do penhor estava lotado – tinha gente saindo pelo Demostenes ou pelo Dirceu, como queiram –, mas duas velhinhas aparentando 70 anos com rostinhos de 67 se destacavam no meio da plateia pela indumentária que usavam. Ambas vestiam um preto total, muito além do básico, de alto a baixo. O que as diferenciava era a cor do lencinho ao pescoço. Uma usava lenço amarelo e a outra, vermelho.
O espaço destinado ao penhor estava lotado e o sistema de senhas fora do ar: penhor e Lei de Murphy, tudo a ver!
Toda vez que eu gritava a próxima senha, torcia para que as duas velhotas viessem ao meu guichê. Certamente, aquele atendimento iria render. Isso era óbvio. Previsível. Quando chamei a senha 51, as duas senhoras levantaram e eu imaginei que deveria ter sido uma boa ideia. Ao se aproximarem, percebi que uma delas trazia um cãozinho no colo, justamente a senhora do lencinho vermelho. Um cusquinho inquieto, mas silencioso. Antes de eu perguntar o que fazia com um cachorro dentro de uma agência bancaria ela falou.
– É o meu cão-guia. Eu digo que é meu cão-guia para poder entrar nos bancos.
– Ela não é cega e o cusco não é cão-guia. Jeitinho brasileiro, o senhor conhece – falou a do lencinho amarelo.
– Fecha essa matraca Maria Rosa! Ele é meu companheirinho e, além do mais, o Osvaldinho é um cão francês.
– O pulguento francês é viralatô. Mas se escreve viralateau.
Percebi que o clima entre as irmãs gêmeas era de rabugice mútua. O cusco pulou para cima do guichê e vi que usava uma coleira vermelha. O cusco era preto com patinhas marrons. A coleira combinava com o lenço da dona.
– E a senhora também não tem um cachorrinho? – perguntei a outra, assim, do nada.
– Não, eu tenho uma gatinha. Uma amiga me trouxe de Goiás.
– E ela usa uma coleirinha amarela – falei.
– Como é que o senhor adivinhou?
Não respondi, lógico.
Então, a Rosa Maria – uma chamava Rosa Maria e a outra Maria Rosa – acabou com aquela ladainha de cusco francês e gatinha goiana e outras baboseiras e colocou uma montanha de anéis, brincos, colares e pulseiras em cima do guichê.
– É tudo ouro 32, quanto que a Caixa paga por eles?
A velhota me pegou no contrapé com a história de ouro 32. E falei simplesmente que não existia ouro 32. No máximo ouro 24 e só em barra. As joias são ouro 18...
– Como não! As minhas joias são tudo ouro 32.
– Mas... – e o cusco rosnou num francês que não entendi, mas o recado estava dado.
Avaliei as joias e preenchi o contrato. E elas saíram resmungando uma com a outra.
– Tu é muito grossa! Se o moço falou que não existe ouro 32 é porque não existe.
– Sabe nada esse pirralho da Caixa. E vamos logo que o Osvaldinho quer passear no parque.