terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A canetinha rosa do guasca *

A Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos ocorreu entre os anos de 1835 e 1845 por essas bandas do sul do Brasil. Naquela década sangrenta os gaúchos se rebelaram contra o Império. Num audacioso 20 de setembro deram início a revolução, num 11 de setembro proclamaram a República Rio-grandense e num mormacento fevereiro, 10 anos após, assinaram a paz de Ponche Verde nas planuras de Dom Pedrito.
Então, em todos os meses de setembro os gaúchos resgatam lembranças da epopéia farroupilha. Heróis farrapos como Bento, Netto, Garibaldi, Anita, Canabarro e tantos outros são reverenciados em músicas e versos nos galpões, nos CTG’s, nas escolas, enfim, nos rincões do Rio Grande por onde sopra o Minuano ou onde estiver um gaúcho em qualquer parte dos quatro cantos do mundo.
Os jornais estampam reportagens sobre os revolucionários de 35 e no dia 20 ocorre o desfile da gauchada orgulhosa de seus antepassados que são lembrados como os centauros dos pampas. Os garbosos cavalos batem cascos e cagam pelas avenidas afora. Que mal faz o cheirinho de uma verdejante bosta diante da importância da manifestação tradicionalista?
Nas repartições públicas, bancos, lojas e nas entidades civis os funcionários trabalham pilchados. Os novos centauros dos gabinetes e escritórios ostentam a campeira indumentária. Alguns, ainda mais orgulhosos, exibem certificados de sua farrapa descendência. Até o “tchê” é precedido de um carregado “mas bah!” para autenticar a momentânea, mas acintosa grossura guasca-pampeana.
Dirijo-me a uma instituição bancária para assinar um contrato de empréstimo pessoal. O funcionário, alegre e muito gentil, começa o atendimento. Estava trajado a rigor para a semana festiva em questão. Calçava botas com chilenas prateadas, usava uma bombacha preta, uma camisa branca e um lenço vermelho ao pescoço que identificava sua tradição de maragato ou um fanatismo gaudério pelo Internacional e uma guaiaca comprada lá no Uruguai. Um chapéu às costas, preso pelo barbicacho, era um detalhe especial.
- Buenas tardes! - cumprimentou-me com um genuíno jeitão missioneiro.
- Buenas... – respondi com um jeitão, também missioneiro, de quem nasceu em Santiago do Boqueirão.
Casualidade ou não, mas o gaudério ali em minha frente, possuía um volumoso bigode de causar inveja ao Paixão Cortes.
Antes de assinar o contrato, solicitei ao escriturário guasca para mostrar-me a data do vencimento. O gaúcho com aquele baita lenço e escondido atrás do bigodão, saca a sua poderosa adaga farrapa: uma caneta. Ou melhor, um salientador, e faz uma marca fosforescente rosa no meu contrato, indicando a data.
A mim pareceu meio esquisito e contraditório. Um “gaúcho-dos-quatro-costados”, falquejado no lombo dos baguais, com uma canetinha rosa-shocking para salientar contratos.
Não pude deixar de brincar com o vivente.
- Tchê louco! De bombacha... mas com canetinha rosa. - deixei a frase no ar.
Tasquei minha assinatura no papel enquanto o bombachudo rodopiava a canetinha rosa entre os dedos, pensativo.

* Crônica classificada no 13º História do Trabalho 2006.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O penhor das latinhas


Uma sexta-feira tranqüila com a perspectiva de um vasto e ensolarado final de semana prolongado com o feriado na segunda-feira.
A última cliente do dia era uma senhora, aparentava ter mais de 80 anos. Baixinha, curvada e tinha o cabelo cuidadosamente bem arrumado, com um preto intenso e uma maquiagem exagerada. Usava na lapela de seu casaco um camafeu. Com a maior calma do mundo, e lentamente, dirigiu-se ao meu guichê. Portava três ou quatro volumosas sacolas plásticas de mercado e uma bolsa com a estampa de uma zebra.
Eu já estava com o pensamento na caipirinha de vodka após o expediente no “Ponto de Cinema”. Tamborilava e assoviava a música de Bob Dylan “Blowin’ In The Wind”.
Sentou-se em minha frente e começou a falar. Disse que precisava penhorar umas “coisinhas”, mas antes precisava me contar uma história. Com uma voz compassada que mal conseguia ouvir, começou sua narrativa.
- Meu marido morreu, há dois meses, com 99 anos. Que Deus o tenha! Mas, coitado, tava um caquinho. E ele queria chegar aos cento e doiiiissssssssssssssssssssssss. - e foi baixando a cabeça e eu pensei que ela estivesse esvaziando.
- Mas ele viveu bastante... aproveitou a vida. – acrescentei.
- Aproveitou até demais aquele sem-vergonha. – levantando-se abruptamente. E continuou. - Velho safado. O senhor não imagina o que o Arnaldo aprontou em vida. Sinto pena do diabo... pois é claro que ele está no inferno.
De repente ficou em silêncio. Baixou a cabeça, novamente, e quase sumiu do meu campo de visão.
- Mas como é mesmo que seu marido morreu? – perguntei.
- Vinte e um tiros. – acordando do seu breve repouso.
- O seu marido levou vinte e um tiros...
- Ele era tenente-coronel. Lutou na 2a Grande Guerra. Teve honras militares e foi saudado com vinte e um tiros pelos soldados do Exército. O velório foi muito bonito. Nem merecia aquele desgraçado. Enfim, que o demônio o tenha. Por mim, que queime nas labaredas profundas do inferno.
- É, mas foi uma bela homenagem.
- E sabe o que ele me deixou? Uma porcaria de uma pensão e uma sobrinha meio lelé. Sabe... problemas. – e apontava com o dedo indicador para a própria cabeça. – E como eu rezei para aquele infeliz ir embora. Foi, e foi tarde, e me deixou com uma louca varrida. Aí que eu queria chegar moço. Aquela doida quer que eu faça o penhor dessas coisas aqui. Ela quer comprar um vestido de noiva com o dinheiro desse penhor.
Colocou sobre o guichê, três sacos plásticos com latinhas vazias de cervejas para serem penhoradas na Caixa. Pasmo, eu fiquei sem o que dizer. Ela continuou.
- Eu sei que a Caixa não penhora latas, mas eu não posso contrariar a Deoclécia. Ela me obrigou a trazer as latas para vocês avaliarem. Aquela mulher é louca, ela bate em mim.
Lembrei-me daquela gostosa do Big Brother que dizia “ninguém merece”. E ainda por cima no final de uma sexta-feira véspera de feriadão. Como é que essa mulher passou pela porta giratória? E só latas de cerveja, nenhuma coca diet. Mas essa “véia” bebe! – pensei cá com os meus botões.
- Moço, eu quero que o senhor escreva isso num papel. – falou mais pausadamente que o normal. – “A Caixa não faz penhor de latas”. E assine e ponha o seu carimbo. Eu levo para ela, senão ela é capaz de me bater. Sabe! Ela tem a mão pesada.
Então escrevi.
“A Caixa Federal não faz penhor de latas de cerveja. Somente aceitamos jóias de ouro”. Assinei e coloquei meu carimbo.
- Tem que ter o carimbo da Caixa. Moço! Aqui não tem o carimbo da Caixa...
Peguei o carimbo de cruzamento de cheques e coloquei logo abaixo do meu.
- Pronto.
- Agora sim. Bom final de semana, moço.
E se foi curvadinha. Lentamente, arrastando os sacos com as latas vazias.
Ninguém merece...

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Agente funerário

Parte I – Caixa Econômica Federal
Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Não lembro direito, mas era uma sexta-feira 13 de um agosto sem graça.
De repente, como por encanto, a tarde de Santa Maria tornou-se escura, nuvens negras fecharam o tempo e relâmpagos e trovadas alvorotaram os passantes. Correrias e passadas largas agitavam o Calçadão e a praça Saldanha Marinho.
Do alto do prédio da Caixa observamos as luzes do centro anunciando a noite que chegara mais cedo. Alguém comentou em adicional noturno, mas não dei muita importância.
O recinto do penhor estava vazio. Estou absorto lendo os editoriais do Conta Corrente quando um ser, que tinha todas as feições de um terráqueo, simplesmente surgiu diante de meu guichê.
- Boa noooooite! – falou com uma voz meio barítona, meio metálica.
- Boa... tarde. – respondi refazendo-me do susto.
Sinistro e misterioso o cidadão postava-se em minha frente. Usava um chapéu e luvas pretas e uma capa estilo Matrix. Ele não sorriu, mas eu percebi um brilho de metal nobre nos caninos.
Os instantes que antecederam a confecção do contrato de penhor foram travados com perguntas minhas e respostas monossilábicas ou com apenas uma única palavra do misterioso mutuário.
- Seus documentos por gentileza.
- Sim.
- Seu comprovante de residência.
- Não.
Mesmo assim resolvi fazer o seu cadastro. Estava curioso para ver o tipo de jóias.
- Sua profissão?
- Agente...
- De polícia?
- Funerááário.
- Agente funerário. – repliquei baixinho.
- Funeráááááário. - aquele vozeirão retumbou no recinto.
Não sei se foi impressão minha, mas o segundo funerário tinha o dobro de “a” do primeiro.
- Endereço? – também comecei a economizar as palavras.
- Bozano.
- Número?
- Meia, meia, meia.
- Apartamento?
- Meia, meia.
- Cidade?
- Santa. – para quem não sabe: Santa Maria.
- O senhor trouxe as jóias?
- Trouxe.
Ficamos por alguns segundos sem falar. Eu esperando as jóias e ele, certamente, esperando mais uma pergunta. Mas essa eu iria ganhar. Não perguntei pelas jóias. Fiquei aguardando. Olhando para ele com uma cara de taxo.
- Ah! – botou a mão no bolso e tirou um saquinho.
Despejou sobre o guichê 24 caveirinhas de ouro com dois diamantes de 15 pontos nos olhos.
Então, comecei a pesar e medir os diamantes. Quando fui explicar o valor a ser recebido ele falou.
- A cruuuz. – novamente, falou com uma voz meio barítona, meio metálica.
Eu havia esquecido uma cruz de ouro branco cravejada com esmeraldas.
- A cruz. – sussurrei.
- A cruuuuuuz.
Não sei se foi impressão minha, mas, novamente, a segunda cruz tinha o dobro de “u” da primeira.
Quando fui dizer o quanto levaria pelas caveiras e pela cruz ele argumentou.
- O morceeeeego. – com aquela voz de causar arrepio na espinha.
E, novamente, eu havia esquecido um raio dum morcego de ouro com olhos de rubi. Esse cara está de brincadeira comigo. As jóias, simplesmente, apareciam no balcão.
Antes de falar o valor verifiquei se não havia nada em cima do guichê para ser avaliado.
- O senhor vai depositar o dinheiro?
- Não. Vou levar para o Banco do Brasil. – essa foi a única frase dita pelo cidadão.
Entreguei o dinheiro. E o misterioso mutuário saiu lentamente. De repente virou-se e disse. – Boa nooooooite.
Nesse momento um estrondo de um trovão iluminou a praça e, imediatamente, uma chuvarada inundou o centro da cidade.


Parte II – Banco do Brasil
Raul Giovani Cezar Maxwell

Estava preparando-me para ir embora, estava no final do expediente externo quando olhei para fora, no exato momento em que ribombavam trovões no céu de Santa Maria. As nuvens trouxeram uma escuridão noturna quando estava apenas próximo às 16 horas. Olhei meu relógio procurando os ponteiros encostados no doze e no quatro, mas incrivelmente eles estavam ambos sobre o 12. Achei estranho. Algo mais estranho ainda estava por vir. Uma criatura estranha. A porta pareceu girar sem que ele a tocasse.
Sinistro e misterioso o cidadão postava-se em minha frente. Usava um chapéu e luvas pretas e uma capa estilo Matrix. Ele não sorriu, mas eu percebi um brilho de metal nobre nos caninos.
Olhei para os colegas, mas eles não pareciam ver o que eu via. É o treze, pensei, de agosto, sexta-feira. O cheiro de esgoto, que eu sentia, devia ser da enxurrada lá fora.
Então ele falou, lúgubre, com um hálito próximo a dois Cadenas:
- Boa Noooooooite!
- Boa - respondi idêntico julgando ser de brincadeira, apesar do calafrio provocado pelas vogais sibiladas e repetidas.
- Em que posso ajudá-lo? – eu ouvia o eco de nossas vozes devido ao silêncio sepulcral do restante da agência.
- Queeeerooo liiiiquidaaaar... - começou ele enquanto eu sentia latejar minha jugular.
Passei a mão no pescoço por instinto ao perceber os dentes pontiagudos e amarelados.
- Liquidar...?
- Um CeDeeeeCeeee – terminou consoante a minha frente
Não falei, mas pensei. Em seu caso CDC seria Caixão de Defunto Consignado. Sorri por dentro. Apesar de tudo não perderia a piada.
- Número da conta, por favor, e seu nome... – pedi.
- 66.666-6 Vlaaaad Karloooof – a voz parecia sair direto da garganta sem passar pela boca.
Calculei a dívida e me arrepiei novamente. Mais meia dúzia de seis.
Ele não esboçava reação.
- Por favor, o senhor pode ir depositar o valor no caixão. - falei rapidamente.
Percebi o ato falho e corrigi logo
-... No caixa.
Fiquei observando o seu deslocamento. Nada aparecia sob a capa longa que cobria todo seu corpo, aparentemente magro e ossudo, parecia flutuar. Fechei os olhos e os esfreguei para ver se não era um sonho. Quando os abri novamente ele já estava ali a minha frente de novo. Meu sangue gelou em todo meu corpo, menos na jugular. Ali, parecia ferver.
Ele me fitava e parecia agradecer o atendimento, quando tive uma idéia repentina.
- Posso tirar uma foto do senhor? Antes que ele respondesse puxei a máquina da gaveta e apertei o disparador. O flash se confundiu com o relâmpago na rua. Ele girou rápido como a se proteger do clarão, puxou a capa sobre os olhos e num átimo já estava na escuridão, sumindo por entre a locomotiva e a biblioteca. Outro piscar de olhos e a chuva parou e o dia voltou ao seu lugar.
O medo que me restou era que, ao revelar o filme, se revelasse que tudo não passou de uma ilusão de ótica, fruto do estresse de um final de sexta-feira. Treze de Agosto. Hoje, de estranho, apenas duas manchinhas roxas em meu pescoço.
A foto? A foto foi utilizada na campanha salarial 2007.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

O senhor conheceu o Getúlio?

Essa foi a pergunta que a mutuária fez após tecer rasgados elogios ao ex-presidente e maldizer o mês do cachorro louco. Estávamos no dia 06 de agosto e lamentávamos as vítimas das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki no Japão há mais de 60 anos.
Mas o questionamento me pegou no contrapé. Com a guarda baixa e meio desatento. Afinal, era a primeira cliente do dia.
- O senhor conheceu o Getúlio?
Pensei em responder, de pronto, que havia sido amigo de infância de Getúlio Vargas, que tinha jogado bolinhas de gude lá na fazenda Itu, que até pelas barrancas do rio Uruguai havíamos andado juntos, mas a minha reação foi, apenas, um seco e engasgado. - Hein!!??
Ela continuou com seus acalorados elogios ao Getúlio Vargas e ao glorioso partido trabalhista.
- Quando o Getúlio morreu houve uma comoção no Brasil. O país inteiro chorou. Eu fiquei uma semana lamentando sua morte. Sabe... eu perdi um pai. – comentou chorosa.
O que eu achei lastimável.
Ela dissertou sobre os feitos do Pai dos Pobres e que nem as mortes de Airton Sena e Tancredo Neves e as comemorações do Penta colocaram tanta gente nas ruas como a morte do Gegê. (O Gegê ela falou suspirando, com a voz embargada).
“E nem o Médice eu havia conhecido...” – retruquei em pensamento.
Quase em prantos, mas com os olhos marejados pela saudade do ex-presidente trabalhista foi-se com seu penhor de R$ 350,00.
Impressionado com a pergunta da cliente. O senhor conheceu o Getúlio? Fui direto ao encontro de um espelho inspecionar a minha fachada. Tudo bem. Não sou um Leonardo Di Caprio, um Tom Cruise, mas também não sirvo para Derci Gonçalves. Tenho os cabelos nevados há mais de cinco anos e um cavanhaque mesclado entre o preto e o branco e feições de um velho rabugento. Será que eu estou meio acabadinho?
Ela me chamou de velho, mas também relegou uma certa importância, afinal, quem conheceu Getúlio, não poderia ser um qualquer. Diante de um juiz eu não seria um pé de chinelo. E esse foi o meu único consolo.
Dois ou três atendimentos posteriores uma senhora, dona de um laboratório fotográfico, me oferece um brinde de umas fotos 20x25.
- Leve seus netos lá que a gente bate umas fotos bem bonitas.
“Que fase!!!” - pensei cá com os 150 botões da minha bombacha preta. Tive a impressão que as palavras seus netos tiveram uma ênfase irônica.
O final do dia ainda me reservaria algumas emoções no âmbito da terceira idade.
Um pedreiro que foi fazer o conserto de uma porta lá em casa, perguntou para minha esposa se ela era minha filha.
É claro que minha esposa ficou radiante. Saltitante e com um sorriso de orelha.
- Ganhei o ano!! Ganhei o ano!! Ganhei o ano!! – esbravejava casa adentro.
O serviço custou R$ 20,00 e ela pagou R$ 70,00.
Uma Mega-sena acumulada não causaria tanta felicidade. O que faz umas simples palavras na mente de uma mulher! Uma semana após todo o bairro sabia que ela era minha filha. Eu achei que o tal fulano deveria ser um portador de necessidades especiais. E fiquei preocupado com o prumo da porta. Ofertá-lo com uma consulta ao oftalmologista poderia ser a minha contrapartida.
Alguém aí conheceu o Getúlio? Médice? Collor?
Preciso, urgentemente, de uma receita caseira do Grecin 2000.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

O penhor do Pinto Rosa *

Certa tarde, de um dia quente desse nosso verão escaldante, entra no recinto do penhor, um senhor alto, todo banhado em suor. Um gringo magro do interior de Anta Gorda com uma larga vivência urbana, esperto e conversador. Dirige-se diretamente ao avaliador de penhores, que estava absorto na leitura de um informativo do sindicato com notícias sobre as negociações salariais.
- Boa tarde, moço.
- Boa tarde.
- Aqui dentro tá fresquinho, não imagina como está lá fora. Chove torrencialmente, olhe como estou molhado. – e sorriu de sua própria piadinha.
- Águas caindo. - retorquiu o avaliador, mas o vivente não entendeu o trocadilho.
Queria obter informações sobre o penhor, suas vantagens, desvantagens e se as jóias estariam seguras no banco. Tinha muito medo de roubo e não queria amargar a perda de suas jóias que possuíam um grande valor de estimação, sendo que algumas delas vieram da Itália quando seus avós migraram para o sul do Brasil.
Após obter as informações necessárias e ser tranqüilizado acerca de tal operação e de sua segurança, disse que já era cliente do penhor de uma agência em Porto Alegre, mais precisamente o posto de Penhor da Praça da Alfândega.
- Então o senhor vai trazer suas jóias de Porto Alegre? O senhor deseja pagar o resgate?
- Não, eu já estou com elas aqui... eu quero fazer o penhor.
- O senhor vai fazer o penhor hoje?
- Sim.
- Então, vou precisar da sua Carteira de Identidade, do CPF e de um comprovante de residência.
O seu Valphrido Pinto Rosa passou a documentação para o avaliador. Para entregar as jóias a serem avaliadas, pediu licença, levantou-se, virou um pouco de lado, de frente para a parede.
- Tem que ser meio “escondidito”. – comentou o senhor Pinto Rosa, que naquele momento estava num vermelhão só.
Abriu o zíper da calça, todo desajeitado e atrapalhado, enfiou a mão com uma certa demora, talvez pelo difícil acesso. Antes mesmo de o avaliador, meio assustado, dizer que “pinto” a Caixa ainda não aceitava como garantia para fins de empréstimo, mesmo que dito cujo fosse rosa, o cidadão, ali em frente, retirou de dentro de sua calça um pacote envolto em papel branco e amarrado com atilhos.
- Quero penhorar estas jóias. E tem aí um baita diamante rosa de um quilate. – falou como se tivesse lido os pensamentos do avaliador.
- Ahãn... ahãn... – grunhiu o avaliador duvidando do gringo.
Largou o pacote em cima da mesa e mais que depressa fechou o zíper e estatelou-se na cadeira. Agora o senhor Pinto Rosa estava branco como uma folha de papel. O suor corria-lhe pela testa, embora o ar condicionado do ambiente estivesse funcionando normalmente. Nesses tempos de dólares em cuecas, que mal teria um valioso diamante rosa na cueca do seu Valphrido Pinto Rosa?
O avaliador, com o constrangimento devido a tal situação ser inusitada num posto de penhor, solicitou, com a maior delicadeza possível.
- O senhor desfaça o pacote, por gentileza.
Provavelmente com um pouco de receio em tocar no invólucro branco e suado das jóias, que certamente ladrão nenhum jamais encontraria.
Com uma análise rápida e visual, o lote, de seis anéis, um deles com o tal diamante rosa, três colares e quatro pulseiras, foi considerado como jóias de ouro 18 quilates e em bom estado de conservação. Pularam da mesa para a balança e da balança para o envelope com o lacre da Caixa, o mais rápido possível. Total da avaliação R$ 1.860,00.
E o seu Valphrido Pinto Rosa saiu do penhor cheio dos pilas, diga-se de passagem, com toda a grana na cueca.

* Classificada no Concurso Histórias de Trabalho 2007

Luiza Tatuagem


Ela entrou exuberante.
Com um trejeito de top model desfilou pelo recinto do penhor. Sentou-se em uma poltrona bem em frente ao meu guichê. Uma fábula, uma tentação, um terrorismo biológico arrasando corações. Loura, esbelta e com um bronzeado de fevereiro em pleno novembro chuvoso.
Após alguns minutos, ao chamar a senha 24, o monumento ambulante encaminha-se em minha direção. De repente aquele World Trade Center humano desaba sobre a banca de atendimento, apoiada apenas nos belos cotovelinhos acastanhados de sol. Os seus maravilhosos olhos verdes, da mais pura reação do ácido clorídrico com o cobre, sorriem para mim.
- Ooooooiiiii!
- Bom dia.
Após analisar os quatro anéis e duas pulseiras, devolvendo-lhe um colar de prata, comunico que pelo prazo desejado ela levaria pelo lote a quantia de R$ 69,00.
- Meia nove?
- Sim, por este lote tu levas R$ 69,00.
- Só meia nove?
- Infelizmente...
- Tudo bem vou fazer o penhor.
Para digitação do cadastro peço a sua documentação: Carteira de identidade, CPF e comprovante de residência. Ao ver sua carteira verifico que o nome no documento não combinava com a pessoa em minha frente. Antecipadamente ela responde a pergunta que eu ainda não tinha feito.
- Sou eu mesma. Viste os meus cabelos... quanta diferença!
Chamava-se Luiz Valdemar do Couto Barbosa.
No vaivém da conversa contou-me que em sua adolescência havia jogado de quarto-zagueiro no Grêmio Santanense de Livramento. Era conhecido como Parada Barbosa. Nenhum atacante passou incólume pela mais famosa muralha juvenil da fronteira sul do Rio Grande.
Hoje era apenas a Luiza Tatuagem.
- Tatuagem?
- Aqui não é o lugar mais apropriado para eu te mostrar a tatuagem.
- Bom! Luiz... Luiza, por gentileza o teu endereço?
- Eu moro na rua Conde D’Eu, dois, meia, nove.
- Conde o quê?
- D’Eu, dois meia nove.
- Ah!
Após receber a quantia combinada, levanta-se abruptamente e dá meia volta, seus longos cabelos louros esvoaçam e fazem uma varredura no meu guichê. De súbito, joga o nariz para o alto e se vai exuberante como uma top model desfilando pelo recinto do penhor.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Bondosa velhinha


Chamava-se Anita Maria Garibaldi Deodora Prestes da Fonseca. Uma bondosa anciã. Morava em um distrito de Santa Maria e vinha todo santo mês pagar a prestação de seu financiamento habitacional no caixa da Caixa.
Diante da simpatia e das atitudes amáveis daquela bem-falante senhora, certa vez, resolvi fazer um comentário sobre o seu nome. Um nome imponente que desde o primeiro dia aguçou minha curiosidade sobre sua origem.
- A senhora tem um interessante e bonito nome, presta homenagens a várias figuras da nossa história. De antemão, percebe-se que seus pais eram pessoas cultas.
E comecei minha divagação:
- Anita Garibaldi foi uma guerreira, valente farrapa e incansável companheira do grande e também herói farroupilha Giuseppe Garibaldi; Deodoro da Fonseca proclamou a República do Brasil e foi o nosso primeiro presidente e por fim seu nome homenageia Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, um dos maiores ícones da esquerda brasileira. Um revolucionário por excelência. Foi preso e torturado, viveu boa parte de sua vida na clandestinidade lutando pela justiça e pela liberdade que acreditava.
Imaginei que um elogio desses a bondosa velhinha jamais havia recebido.
A fisionomia de D. Anita Maria enrubesceu, transformou-se do outro lado do guichê e soltou o verbo acerca do seu nome.
- Olha moço! Anita Garibaldi foi uma vagabunda, abandonou o marido e foi viver com um depravado caudilho italiano metido a conquistador; Deodoro era um fracote, tão fraco que para proclamar a República levantou aquele chapéu velho e fedorento que usava. Em qualquer país civilizado e decente um herói de tamanha envergadura levantaria uma espada e descarregaria uma rajada de metralhadora no infinito azul do universo. O Prestes, um sem-vergonha grande. Traiu o exército e foi à moda caudilhesca com uma tropa pelo Brasil adentro, achando que resolveria os problemas do país. Não deu em nada. A intentona de 35 foi o seu maior fiasco. Moço! No meu nome só tem sem-vergonha e vagabundo. – sentenciou.
No lado de cá do guichê fico estarrecido. Momentaneamente sem saber o que dizer. Quando me refaço do golpe, lembro de Nossa Senhora. Como sou devoto de Santa Maria, silenciei sobre qualquer comentário acerca da Maria do seu apoteótico nome.
Dona Anita Maria ainda fez outros comentários sobre algumas personalidades da nossa história e encerrou o assunto com a alma lavada e um largo sorriso que iluminou sua face travessa.
Arrumou seus pertences em sua inseparável bolsa, levantou-se lentamente e saiu. Repentinamente volta e fala baixinho para eu ouvir o seu último comentário:
- Vou indo, pois o meu genro, o Getúlio, está me aguardando... aliás, um corno nessa história.
E se foi, passo curto e ligeiro, para fora da agência, ao encontro do genro.
E eu fiquei sem saber se o corno era o genro ou o saudoso trabalhista ex-presidente.

domingo, 6 de janeiro de 2008

As abotoaduras do Conde *

No dia em que a Caixa comemorava os 145 anos, a temperatura ambiente estava insuportável e o ar condicionado da agência funcionava precariamente. Dona Alzira se aproxima do guichê, lentamente, pois os anos eram antigos para ela. Sorriu e sentou-se. Dona Alzira tinha as mãos trêmulas em virtude do Mal de Parkinson. Mas não se incomodava com seu infortúnio, inclusive, brincava com sua doença.
- Sabe moço, ontem eu vi na televisão que a Caixa está fazendo 145 anos. Acho que aqui no penhor só a Caixa é mais velha do que eu. Nessa festa de aniversário eu toco pandeiro. E levantou, sorrindo, sua trêmula mão.
- Mas Dona Alzira a senhora está bem...
- Enrugadinha filho, bem enrugadinha e mais pra lá do pra cá.
Revirou a bolsa em busca das jóias a serem penhoradas. O seu ventilador portátil fazia muito barulho e pouco vento. O suor corria-lhe pelo rosto.
- Comprei essa “josca” nos camelôs. – comentou contemplando o insuficiente ventilador que portava. E continuou. - Bolsa de mulher o senhor sabe como é... finalmente! Moço, eu preciso levar R$ 700,00. Tenho que pagar a matrícula da minha neta na faculdade. Ela cursa Medicina, vai ser médica de louco. Aliás, uma loucura é o que se gasta! A gente deveria viver 145 anos para pagar todas as contas. - sorriu, novamente, com o seu espirituoso trocadilho.
- A senhora vai precisar de um pouco mais de peso. Aproximadamente 35g de ouro.
- Então, vão-se as abotoaduras do Conde.
- Abotoaduras do Conde? – surpreendo-me com tamanha raridade no penhor. Não era todo dia que avaliávamos jóias oriundas da monarquia brasileira.
- Sim, possuo essas jóias há muito tempo, são bens de família. Essas coroas gravadas nas abotoaduras combinam com as coroas gravadas no anel e nos brincos da Condessa. São muito lindas. Vou contar-lhe a história. – pausadamente continuou. - O meu marido era bisneto do Conde e essas jóias vieram passando, de geração em geração, desde os tempos do Império e acabaram em minhas mãos... e nos penhores da Caixa. Ah! Se o Conde soubesse! Deve estar se revirando...
- E os brincos da Condessa? Eles não estão aqui. – indago.
- Bem, o Conde e a Condessa não tiveram filhas, somente filhos. Por casualidade do destino os brincos estão comigo e bem guardados lá em casa, como também não tenho filhas, certamente, acabarão nos penhores da Caixa. - soltou uma gostosa gargalhada e complementou. – E continuarão nos penhores por mais 145 anos.
Com a maior calma do mundo Dona Alzira prosseguiu com o relato familiar, a fila no recinto do penhor aumentava e impacientava alguns mutuários. Enquanto eu testava as abotoaduras do Conde, uma esbelta e formosa loira cruza as roliças e douradas pernas no banco em frente ao meu guichê e, por alguns segundos, me desconcentra.
- Existe um quadro do dito cujo no departamento de Biologia da Universidade. Eu que coloquei na parede. – complementou.
Dona Alzira contou que o Conde não era biólogo e quando trabalhava na Universidade era professora do Departamento de Biologia. Dava aulas na disciplina de fitologia. O quadro estava jogado em um canto do laboratório, como era uma moldura bonita e uma pintura antiga, resolveu colocar no hall do Centro. O quadro do Conde estava no prédio porque o Conde era bisavô do seu marido e o seu amado sogro era muito amigo de um antigo diretor do Centro de Ciências Naturais.
- Filho, eu trabalhei uma vida inteira naquele prédio com o Conde olhando e fiscalizando o vaivém dos alunos e professores. Não gostava daquele olhar penetrante da pintura e daquela pose de almofadinha. Tinha uma costeleta que o Menem copiou e uma calvície igual a do Kojak. Você lembra do Kojak? O detetive? Ninguém mais lembra do Kojak. Sabe, o quadro do Conde não está mais lá. O senhor não imagina o que funciona, hoje, próximo do local onde estava o almofadinha?
- Não faço a menor idéia.
- O posto de atendimento da Caixa Econômica Federal. E se botarem um penhor lá eu penhoro as jóias do Conde.
Sorriu longamente e levantou a mão trêmula. Fez um sinal de resignação com a cabeça e baixou o braço.
- Moço, vai demorar muito? Que droga de ventilador!

* 1º lugar no concurso de crônicas Fenae 2007