domingo, 8 de junho de 2008

As mulheres de Nádio *

Quando acionei a senha 69, ela veio toda espalhafatosa em direção ao guichê.
Uma morena bronzeada, cabelos extremamente curtos e olhos verdes. Uma pintinha ao lado da boca, igual a da Débora Secco, era, apenas, um detalhe. Estava ornamentada com meia dúzia de pulseiras em cada braço. Bijuterias de qualidade duvidosa.
Sem deixar de falar ao celular, sentou-se em minha frente. Parecia bem exaltada e a frase que ouvi não deixava dúvidas.
– Tu tem que dar um pontapé no traseiro daquela vagabunda!
Sem desligar o aparelho, me alcançou um contrato com umas quinze renovações presas por um clips e que estava vencido desde maio de 2007. Disfarçando um sorriso, pediu para ver quanto era a dívida.
Até então eu não tinha falado e acho que não iria, pois a morena continuava atenta ao celular e os ânimos, ainda, estavam exacerbados.
– Aquela ordinária vai torrar todo o teu dinheiro, pode crer. Tu não vai ficar com um mísero centavo no bolso.
Olhou para mim e perguntou quanto dera a cálculo.
– R$ 999,00. – respondi.
– Vou renovar, veja quanto dá para trinta dias.
Como o contrato estava em nome de outra pessoa, perguntei quem era Nádio. A morena respondeu, se esforçando para ser simpática, que era de um conhecido. O amigo estava doente e não poderia vir pessoalmente.
– A senhora poderá fazer a quitação, mas para retirar as jóias terá que ter a procuração do Nádio ou a autorização no contrato. Ok? – informei os procedimentos em caso de resgate.
Ela, ainda mantendo a ligação, franziu as sobrancelhas e mandou seu interlocutor visitar a Ponte de Paris. Em alto e bom som para todos ouvirem.
E, com a maior calma do mundo, dirigiu-se a mim.
– Meu caro, eu faço penhor há 10 anos, desde o tempo em que a Caixa se chamava Monte de Socorro, sei tudo sobre jóias no prego. – e continuou seu colóquio ao telefone.
Aí percebi que o tal Nádio estava no outro lado da linha.
– Tu sabe, Nádio, que de separação eu entendo. Deixei o meu Ex com uma mão na frente outra atrás. Fiquei com quase tudo. E o pobre coitado arrumou uma coroa gastadeira e vigarista que acabou torrando o pouco que havia deixado. Mas bem feito. Homem é tudo igual. E a tua também, se tu não te separar, ela vai detonar tudo o que te resta. E essa tua mulher não é flor que se cheire.
Fiz de conta que não percebi que o Nádio estava no telefone e recebendo moderados e sinceros conselhos acerca de sua vida conjugal.
– Outro dia eu vi a tua queridinha no shopping toda faceirinha. Parecia uma cadela no cio. Dando mole para todo mundo.
Pobre Nádio! As duas mulheres de Nádio. O que o coitado fez para merecer tanto... – pensei no clicar das renovações.
– Meu amor, só me liga quando tiver com o divórcio encaminhado. Certo querido. Tchau, meu bem. Ah! Lembrança pra mocréia.
Aí, sim, desligou o telefone.
– O senhor não acha que eu sou uma ótima conselheira?
– Sem dúvida... acho. – mas acho que ela não acreditou em minhas palavras.
– Sei... – foi o que ela respondeu.
Pagou a renovação com uma nota de R$ 100,00. E se levantou para ir embora. Nesse instante o celular toca de novo.
– Adivinha quem é?
– Nádio. – respondi sem maior interesse.
– Tu de novo seu corno! Não larga do meu pé.
E se foi aos berros, pouco se importando com os olhares desconfiados dos outros mutuários do penhor.
Pobre Nádio. Pelo menos a morena atualizou seu contrato. Mas eu fiquei com a impressão que pode ter sido em causa própria. O Nádio que se cuide.
* Crônica classificada em 3o lugar no VI concurso Rubem Braga da crônicas.

A ligação

– Caixxxxa Federal, boa tardiiiiii!
A telefonista, como habitual e mecanicamente faz, numa sonolenta e morna tarde de outubro, transfere a ligação para mim, com o seguinte recado:
– Athos, ligação de Brasília, o Marçal da Caixa Seguros que falar contigo.
– Ô Marçal! Tudo bem? A ligação ta meio ruim, mas o que tu andas fazendo aí pelo planalto central? Não estavas em São Paulo?
– Tô aqui na seguradora, problemas em cima de problemas, debaixo do mau tempo, nem imaginas.
– Seguradora? Tu não estavas na APCEF-SP, Marçal?
– Não! Eu sempre trabalhei aqui na Matriz. Próximo ao poder, na cidade que Oscar Niemeyer projetou e Juscelino Kubitschek construiu.
Neste lado da linha, meio patético, estou achando a conversa meio sem-pé-nem-cabeça. O Marçal na seguradora? Ele não tinha sido transferido para São Paulo? Ele não estava na agência Anhagabaú, totalmente adaptado à metrópole paulista?
– Atho! Seguiu falando o suposto Marçal.
– Estamos com um problema para liberar o seguro. O processo foi mal encaminhado. Faltam documentos e provas. Os cálculos terão que ser refeitos novamente.
– Que seguro? Que documento? Marçal! Eu estou no penhor.
“Por que o Marçal tá falando o meu nome sem o “s”?” – pensei cá com os meus botões.
– Pô Atho, o seguro do Valdomiro, aquele que demoliu o carro aí na 290. Não tá lembrado?
– Quem está falando, afinal?
– Aqui é o Marcelo da Caixa Seguros.
– Marcelo?
– Sim, o Marcelo.
– E tu desejas falar com quem?
– Com o Otto, o Superintendente do escritório de Negócios de Santa Maria, certo?
– Errado! Só um momento, Marcelo.
Transfiro, novamente, a ligação para a telefonista.
– Esta ligação não é do Marçal para falar com o Athos e, sim, do Marcelo para falar com o Otto. Certo?
– Ah! Bom, só um momentinho.
E segue a telefonista, na sonolenta e morna tarde de outubro.
– Caixxxa Federal, boa tardiiiiii! Seu Otto a ligação de Brasília.
– Fala grande amigo Julio Rafael.
– Aqui é o Marcelo.
– Mas eu pedi uma ligação para o Julio...
– Caixxxxa Federal, boa tardiiiiii!

terça-feira, 3 de junho de 2008

A francesinha

Uma senhora, habitué nas dependências do penhor. Faceira, ágil e sorridente, que devia ter seus sessenta e poucos anos, aparentemente, bem-vividos.
Tinha uma atitude apressada e gestos rápidos. Os cabelos de um preto intenso, óculos fundo de garrafa e uma verruga bem na ponta do queixo.
Muito conversadeira quando vinha penhorar ou renovar algum contrato. Às vezes se atrapalhava nas datas, mas isso não era um motivo para estresse. Sorria com sua falta de memória e confusão com a papelada do penhor. Que era como se referia ao conjunto de contratos e um sem-fim de renovações que sempre trazia na bolsa.
Nos breves instantes em minha frente contou um pouco de sua vida.
Tinha o nome e sobrenome franceses. Louise Rennée du Poisson. Seus pais eram naturais da França e vieram para o Brasil dois anos antes de ela nascer. Tinha muito orgulho do sobrenome que carregava.
Quando adolescente enamorou-se de um rapaz que se chamava José Pereira, funcionário de um Banco estatal. Se apaixonou e casou com o jovem bancário Zé. Um rapazola de família humilde e muito trabalhador.
Só não aceitou trocar seu registro de batismo. Manteve o nome original. Não admitiu colocar o Pereira no sobrenome. Sendo de uma linhagem tradicional da França seria inconcebível um Pereira na família.
Após ter contado sua instigante história, concluiu.
– Imagina! Louise Rennée du Poisson Pereira. Nunca! Jamais! – o jamais com sotaque francês
– Fui a primeira mulher na cidade a não aceitar o nome do marido. – e completou. – Não me arrependo.
Dona Louise soltava o verbo quando o assunto era o seu marido. Que, segundo ela, já estava mais pra lá do que pra cá. E já fazia algum tempo. Dona Louise Rennée du Poisson também contou com picos de extremada felicidade e euforia que o velho Zé Pereira estava nas últimas. Fazia cinco anos que o velho estava nas últimas e nunca “dava jeito” como comentou em outra oportunidade.
– A gente fica numa torcida, e o malvado sai caminhando do hospital. Vê se pode?
Depois que eu fiz a consulta e ter verificado que o contrato vencia daqui a dois meses, ela pouco se importou, acomodou-se na cadeira em minha frente e começou o seu rosário de contos familiares, ou melhor, do Zé Pereira, pois ela não tinha filhos. Nunca quis ter filhos.
– Colocar filho no mundo e filho de um Zé Ninguém, era muita irresponsabilidade. E um desrespeito com a criaturinha que estaria por nascer.
“Imagina! Ter filho de um Zé Pereira”. – pensei e sorri do meu chiste.
– Imagina! Ter filho de um Zé Pereira. – falou, lendo meus pensamentos.
Então, contou que na noite anterior o Zé Pereira, seu adoentado marido que sempre estava nas últimas, disse que estava com falta de ar e que iria morrer.
– Claro que vai morrer, todo mundo morre. Eu disse pra ele. – e gargalhava do outro lado do guichê.
– É, algum dia a gente vai morrer, mas não precisamos ter pressa. – respondi.
Como não havia ninguém para ser atendido continuou com seus casos.
– Hoje, o Zé Pereira amanheceu com a pá virada, disse que tentou se matar na tarde anterior. Atravessou, bem devagarinho, a rua e nenhum carro o atropelou.
E eu ali na frente dela ouvindo aquela ladainha e com uma cara de sono.
– Agora eu pergunto: quem vai atropelar um velho atravessando uma rua, bem devagarinho?
Deu dois passos para a esquerda, bem devagarinho, imitando o velho, e repetiu.
– Quem?
– Ninguém...
– Falei pra ele. Tem que esperar vir um carro e se jogar na frente. O senhor não acha?
– É uma hipótese...
– Quem quer se matar não avisa. Aquilo não vai se matar nunca. É um cagão. E quem tem que lavar as fraldas sou eu.
Encerrou a conversa dizendo que depois de sua morte, apenas, os seus cachorros sentiriam a sua falta.
Levantou-se e saiu ligeirinha. Caminhou alguns passos apressados e voltou.
– Quando é mesmo o vencimento dos meus contratos?