sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A bela do sapato


Nesses anos todos de banca nas avaliações de joias, observei algumas coincidências. Uma delas é com a senha de chamada para atendimento. Ao chamar a senha 24 ou 69 podia ter certeza, a história rendia.
Novamente aquela pasmaceira de meio de mês. E uma colega, recém-formada no curso de avaliadora, fazia o estágio comigo. Eu, o ilustre orientador na agência.
Quando ela saiu do elevador o penhor e a habitação – que estão no mesmo andar – pararam. Literalmente o tempo parou. Todos os olhos se voltaram para a beldade. Eu não via mais nada, apenas, um par de longas e esbeltas pernas bronzeadas se aproximando do guichê. Ela não caminhava, desfilava pelo recinto. Usava uma mini-blusa vermelha e uma minúscula saia branca. Tinha um longo cabelo preto com uma tiara amarela. O cabelo liso, como uma cascata negra, jorrava pelas costas até a cintura. Meia dúzia de pulseirinhas douradas e brincos em forma de coração. Usava um sapato preto exageradamente alto e uma bolsa também vermelha. Isso tudo foi observado pela Michelli – a avaliadora estagiária – eu só tinha olhos para as suas bem torneadas pernas.
– Tenho que pegar a senha? – perguntou com voz melosa e delicadamente apontando para a maquineta.
– Não precisa – falou Michelli.
– Precisa – falei, imaginando qual o n úmero da senha.
É claro que ela pegou a senha 69 e a história recém estava começando.
Antes de dizer um oi, boa tarde ou qualquer expressão que identificasse que aquele monumento sorria e queria fazer penhor, tocou o celular.
– Não! Não é esse o número, foi engano.
Não sei o que o interlocutor da beldade falou do outro lado, mas foi um recital de: muito delicado de sua parte. Muito gentil. Ahan. Legal. Pode sim. Tudo bem. Bah! O bah ela falou quatro vezes. E um amontoado de palavras gentis. E a conversa dos dois desconhecidos se prolongou por mais de dez minutos. Enfim, desligou o celular e comentou apenas.
– Vá que seja fazendeiro...
Com a maior sem-cerimônia, a moçoila colocou a perna em cima do guichê, com aquele baita sapato preto com uma enorme fivela dourada que, como os brincos, tinha o formato de coração. Não esqueçamos que ela estava de minissaia e o penhor em estado de graça, todos os sete avaliadores.
– Quero penhorar esse sapato porque a fivela é de ouro.
– Não existe sapato com fivela de ouro – respondi de pronto.
– Mas o moço da casa Eny disse que era folheado a ouro 18 quilates, logo, é de ouro. Então quero avaliar.
– Mas...
– Quero testar – falou a estagiária.
Estava ávida por pingar uma gotinha de ácido na fivela do sapato da moça. Não sei se para testar seus conhecimentos ou por vingança. Mas o fato é que testamos a fivela.
– Então vamos testar a fivela para ver se realmente é ouro. A senhora...
– Senhorita.
– ...Senhorita pode tirar o sapato.
O movimento que ela fez para tirar o pé de cima do guichê foi algo próximo da suprema corte do paraíso. O penhor era um silêncio só. Ninguém renovava. Ninguém avaliava. Ninguém resgatava. E todos suspiravam com os olhos nas fivelas do sapato da moça. Por alguns momentos teve dificuldade para desafivelar o sapato. Quando me prontifiquei para ajudar ela falou a palavra que foi um balde de água fria em minha ansiedade e taquicardia.
– Consegui!!!
Incrivelmente o sapato tinha um aroma de erva doce. Michelli fez o teste e concluiu o que todo o universo e os mais de mil avaliadores concluiriam.
– Não é ouro!
A moça fez um beicinho que eu achei a coisa mais lindinha do mundo. Devolvemos o sapato, mas sem antes perguntar de onde era aquele aroma de erva doce. Respondeu que havia passado alcoolgel nos pés. Sabia e tinha visto a entrevista do ministro da saúde recomendar o uso do álcool nas mãos, mas por segurança, passava também nos pés. E eu fiquei imaginando o porquê.
– Tchau, doutorzinha – e saiu sem dar mínima bola para mim.
Encerrou o desfile na porta do elevador e o penhor voltou a sua normalidade. Então percebi que um gaúcho todo paramentado com estribos e arreios de prata aguardava atendimento. E a senha não era 24 nem 69. Mas a estampa do vivente não deixava dúvidas. Afinal, era aquela pasmaceira de meio de mês.