sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O penhor do cabernet [*]

Athos Ronaldo Miralha da Cunha
twitter.com/athosronaldo

Temos que saber lidar com as premonições, avisos que inexplicavelmente recebemos e, na maioria das vezes, não temos a compressão exata. O fato é que podemos pressentir algumas situações momentos antes de acontecerem.
Explico: dia desses acordei – e não sei por que cargas d’água –, comecei a cantarolar uma música símbolo da Quarta Colônia.
“Quando si pianta la bella polenta, la bella polenta si pianta cosi, si pianta cosi, si pianta cosi.”
É uma bela canção e eu cantava em frente à televisão no momento em que o “Bom dia Rio Grande” fazia uma reportagem sobre uma nevasca em Gramado. Lá na Serra os turistas fazendo festa com a neve e eu ali imaginando como é que os gringos plantavam polenta.
No caminho do serviço veio em minha mente outro clássico musical dos imigrantes italianos. Um hino da Quarta Colônia.
“Mérica, Mérica, Mérica, cossa saralo ‘sta Mérica? Mérica, Mérica, Mérica, um bel mazzolino di fior.”
Por que raios eu estou com essas músicas na cabeça?
Não passou dez minutos e o telefone celular toca. Era a filha avisando que tinha que fazer a matrícula do italiano na AISM. Eu teria que fornecer os cheques pré-datados. Estava explicada a minha cantoria das músicas dos italianos. A minha parca sensitividade explicava a inspiração. Restava, naquele momento, assinar os cheques e “cia cia pum, cia cia pum, cia cia pum.”
Lembremos que o dia estava recém começando e eu ainda viveria momentos incríveis inspirado na minha pseudossensitividade. Devidamente acomodado no meu local de trabalho, tamborilava uma tarantela diante do computador.
Nesse instante, aproxima-se do guichê uma senhora idosa e, coincidentemente, também cantarolava a “bella polenta”. O sotaque era visível, se não era italiana, estava na barriga da mãe num navio vindo da Itália. Apresentou-se.
– Eu me chamo Esmeraldina Mimosa Sousa de Souza. O primeiro com “s” e o segundo com “z”.
Eu fiquei com a impressão que já tinha ouvido, em algum lugar, aquela estória de Sousa com “s” e Souza com “z”. Essa velhota está me enrolando. Com esse palavrório italiano e com sobrenome Sousa de Souza. A velha parece que leu meus pensamentos.
– Minha mãe casou com um portuga... o Sousa com “s” e eu casei com outro portuga... o com “z”. Veja só a sina dessa família.
Depois de uns momentos de silêncio em que me pareceu que a dona Mimosa fazia umas preces para o Diácono, ela começou a tirar umas garrafas de vinho e colocar em cima do guichê. Seis garrafas de um cabernet sauvignon da Cantina Vô Bepi.
– Eu quero penhorar esses vinos aqui.
Eu não sabia o que dizer. Já vi de tudo aqui no penhor. Mas penhor de vinho? Era a primeira vez. Quem sabe uns vinhos de guarda... era uma sugestão a ser colocada na ouvidoria.
– Dona Mimosa, nós só penhoramos joias.
– Mas esse vino é una joia...
– Eu sei que é uma joia de vinho, comprei umas garrafas numa festa lá em Agudo. Mas infelizmente...
Ela resmungou alguma coisa num dialeto incompreensível, mas no final se entendia um “porca miséria” que não deixava dúvidas sobre a sua indignação. Repentinamente, levantou-se e saiu.
– Dona Mimosa, a senhora esqueceu os vinhos em cima da mesa.
– Muito peso para levar de volta para Faxinal.
– O que eu faço com essas garrafas?
– Beba! Santo Cristo!
Fazer o quê? Levei para casa as seis garrafas de cabernet e numa dessas noites geladas tomei uma delas com uma sopa de agnolini.
Naquele dia saí da agência cantarolando “castelhana se você me ama, me ama” na esperança de que uma fogosa correntina viesse penhorar um malbec de Mendoza no dia seguinte. Afinal, eu sou um pseudossensitivo.

[*] Crônica classificada no concurso Histórias de Trabalho 2012. Prefeitura de Porto Alegre.