sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Dona Dilmarina no penhor



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

A senhora Dilmarina é cliente do penhor muito antes desses confrontos eleitorais pela disputa para presidente. Mas nos últimos tempos é motivo de gracejos, pois carrega no primeiro nome os nomes das duas candidatas a presidente do Brasil. Ela é daquelas clientes simpática que gosta de uma conversa. Mora sozinha num amplo apartamento no centro da cidade e é temente a Deus. Chega na agência – ela faz um périplo nas gerências, habitação e penhor – nos horários de pouco movimento e, com isso, a prosa fica espichada. Claro, o assunto nos diversos setores é em quem a senhora Dilmarina votará.
– Se eu morrer, como ficam as minhas joias? – ela estava dramática naquele dia.
– Calma a senhora tem muito tempo de vida, ainda vai votar em muitas eleições.
– Nem sei se vou votar esse ano, não sou obrigada.  
Então, expliquei a situação dizendo que os herdeiros precisavam quitar a dívida e encaminhar um alvará judicial. Dona Dilmarina Lucinha Souto Menor [esse o nome completo] comentou que vivia sozinha, nunca se casara e não tinha filhos. Tinha uma irmã a Maridilma, mais velha e viúva que mora em Garibaldi. E falou que pretendia resgatar as joias antes de partir – com o dedo indicador apontou para cima – para não deixar dívidas para a irmã.
Dona Dilmarina deixava as joias no penhor, apenas, para guardar, levava o empréstimo mínimo. Usava como cofre de aluguel. A violência da cidade a deixava amedrontada e pouco saía de casa. Mas toda vez que saía de casa executava uma simpatia antes de fechar a porta do apartamento. Chaveava e deschaveava – como ela falava – a porta, três vezes. Virou-se de lado em pé diante do guichê e com uma chave imaginária diante de uma porta imaginária rodou a chave três vezes.
– Meu bom senhor Jesus Cristinho, guarde bem a minha casinha. Me leva e me traz. Me leva e me traz. Me leva e me traz. – abriu a fechadura imaginária e fechou.
Olhou para mim, e sorriu.
– Meu bom senhor Jesus Cristinho, guarde bem a minha casinha. Me leva e me traz. Me leva e me traz. Me leva e me traz. – abriu a fechadura imaginária e fechou.
Olhou para mim, e sorriu.
– Meu bom senhor Jesus Cristinho, guarde bem a minha casinha. Me leva e me traz. Me leva e me traz. Me leva e me traz. – abriu a fechadura imaginária e fechou.
Olhou para mim, e sorriu.
Fiquei me imaginando abrindo e fechando a porta da garagem três vezes antes de sair. E o cofre, então, com retardo de 10 minutos: meia hora para abrir.
Deu um tchauzinho e saiu. Virou-se e falou.
– Ah! Eu me chamo Dilmarina, mas voto no Aécinho, que homem bonito!
O que que eu vou dizer lá em casa...
– Mas a senhora não é obrigada... Ela nem ouviu.

sábado, 9 de agosto de 2014

O cão francês



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

O ambiente do penhor estava lotado – tinha gente saindo pelo Demostenes ou pelo Dirceu, como queiram –, mas duas velhinhas aparentando 70 anos com rostinhos de 67 se destacavam no meio da plateia pela indumentária que usavam. Ambas vestiam um preto total, muito além do básico, de alto a baixo. O que as diferenciava era a cor do lencinho ao pescoço. Uma usava lenço amarelo e a outra, vermelho.
O espaço destinado ao penhor estava lotado e o sistema de senhas fora do ar: penhor e Lei de Murphy, tudo a ver!
Toda vez que eu gritava a próxima senha, torcia para que as duas velhotas viessem ao meu guichê. Certamente, aquele atendimento iria render. Isso era óbvio. Previsível. Quando chamei a senha 51, as duas senhoras levantaram e eu imaginei que deveria ter sido uma boa ideia. Ao se aproximarem, percebi que uma delas trazia um cãozinho no colo, justamente a senhora do lencinho vermelho. Um cusquinho inquieto, mas silencioso. Antes de eu perguntar o que fazia com um cachorro dentro de uma agência bancaria ela falou.
– É o meu cão-guia. Eu digo que é meu cão-guia para poder entrar nos bancos.
– Ela não é cega e o cusco não é cão-guia. Jeitinho brasileiro, o senhor conhece – falou a do lencinho amarelo.
– Fecha essa matraca Maria Rosa! Ele é meu companheirinho e, além do mais, o Osvaldinho é um cão francês.
– O pulguento francês é viralatô. Mas se escreve viralateau.
Percebi que o clima entre as irmãs gêmeas era de rabugice mútua. O cusco pulou para cima do guichê e vi que usava uma coleira vermelha. O cusco era preto com patinhas marrons. A coleira combinava com o lenço da dona.
– E a senhora também não tem um cachorrinho? – perguntei a outra, assim, do nada.
– Não, eu tenho uma gatinha. Uma amiga me trouxe de Goiás.
– E ela usa uma coleirinha amarela – falei.
– Como é que o senhor adivinhou?
Não respondi, lógico.
Então, a Rosa Maria – uma chamava Rosa Maria e a outra Maria Rosa – acabou com aquela ladainha de cusco francês e gatinha goiana e outras baboseiras e colocou uma montanha de anéis, brincos, colares e pulseiras em cima do guichê.
– É tudo ouro 32, quanto que a Caixa paga por eles?
A velhota me pegou no contrapé com a história de ouro 32. E falei simplesmente que não existia ouro 32. No máximo ouro 24 e só em barra. As joias são ouro 18...
– Como não! As minhas joias são tudo ouro 32.
– Mas... – e o cusco rosnou num francês que não entendi, mas o recado estava dado.
Avaliei as joias e preenchi o contrato. E elas saíram resmungando uma com a outra.
– Tu é muito grossa! Se o moço falou que não existe ouro 32 é porque não existe.
– Sabe nada esse pirralho da Caixa. E vamos logo que o Osvaldinho quer passear no parque.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O anel da tia Mercedes



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

A jovem mulher me alcançou um anel de ouro branco cravejado com trinta e três diamantes e um solitário de 40 pontos no centro. Um brilhante classificado como OP P1 (para os leigos: péssima qualidade). Não disse que era uma porcaria em respeito a cliente. Ela queria saber se era ouro e diamantes e avaliação de penhor, pois ganhara de uma tia uruguaia que mora na cidade de Melo.
Os tios uruguaios estavam casados há mais de trinta anos. Não tiveram filhos e tinham uma vida pacata numa pacata cidade do Uruguai. A mesma cidade em que o Papa visitou e que originou o filme “Banheiro do Papa”. Pablo e Mercedes viviam na mansidão do pampa uruguaio. Mas em um belo dia Melo a coisa melou, Mercedes descobriu o que jamais supunha. Pablo tinha uma amante. Sua vizinha e melhor amiga, Maria Juana, confidente há mais de vinte anos, era a amante do Pablo. O povoado de Melo ficou em polvorosa com a traição de Pablo – um respeitado cidadão – a uma das senhoras mais elegante da cidade e de uma tradicional família. Mercedes entrou em depressão e não queria mais sair de casa. E não conversava mais com o velho Pablo. Numa viagem a Montevidéu, Pablo achou um anel de brilhantes numa vitrine e enxergou no anel a oportunidade de reconciliação. A peça tinha “treinta y tres” brilhantes e um solitário de 40 pontos. Então, o velho Pablo trouxe o presente para a Mercedes. A tia Mercedes reatou o casamento, mas nunca usou o anel.
Na última visita que a jovem mulher – Rita de Cassia – fez à tia no Uruguai, ganhou o anel de presente. O anel da traição de Pablo. Rita de Cassia também não quis usar porque achava que trazia maus fluidos. Por isso estava colocando no prego... opa, penhor.
Nesse meio tempo – o da história da tia Mercedes – eu fiz a avaliação. Como o meu bisavô é uruguaio também fiquei imaginando uma herançazinha vinda lá dos lados de Bella Union. Um anelzinho com um solitário de dois quilates já ajudava. Um pedaço do drama da tia Mercedes eu não ouvi, acho que foi a parte que o velho foge com a amante para Tacuarembó. Acho que ouvi alguma coisa como velha idiota...
Então, falei que ela levaria R$ 743,19 pelo anel a moça virou bicho.
– Esse anel vale oito mil dólares. O tio Pablo comprou em Montevidéu, para se reconciliar com a tia... são dez anos de traição que o anel reconciliou.
– Tudo bem, mas a gente não avalia traição, nós avaliamos ouro e diamantes. E, além do mais, traiu a mulher durante dez anos e queria se reconciliar com uma porcaria dessas de 40 pontos... no mínimo um quilate. Malandro e sovina esse tio Pablo.
A jovem mulher pegou o anel de minha mão e saiu indignada comigo, mas ela deveria estar indignada com o tio Pablo.
Ah! Vá catar coquinhos no Uruguai. Paciência tem limite.