terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A perua


Ela entrou nas dependências da agência e olhou discretamente para o penhor. Tinha umas grandes e indecentes olheiras, um esquilo enrolado no pescoço e um cachorro à tira-colo.
Uma crônica ambulante vem em minha direção. Pensei.
À medida que se aproximava do guichê, verifiquei que estava enganado. Ela possuía uns estranhos óculos escuros, um chamativo casaco de pele e uma bolsa fora dos padrões normais de pessoas, supostamente, normais. Alguma coisa requisitada do mundo animal.
Em frente a placa escrita penhor, com os dedos polegar e indicador, os demais levantados, baixou os óculos até a ponta do nariz, olhou de cima abaixo o ambiente e perguntou.
- É aqui que fazem penhoooooorrr?
E ela mesma respondeu.
- É.
Deu uma volta de 360° no sentido anti-horário, num imaginário eixo de rotação e sentou-se na cadeira. Ficou olhando para mim, por sobre os óculos. Então, percebeu que estava sozinha. E veio direto para o meu guichê.
- A porta giratória trancou sete vezes lá embaixo. Até que o guardinha perguntou se eu não tinha nada de metal. É claaaaaaaaro que eu tenho. Eu seeeeeeeempre tenho.
Levantou o braço esquerdo e mostrou as pulseiras.
- Aqui tem 28 pulseiras e eu não tiro nem para tomar banho. Mandei chamaaaarr o gereeeeennte. Quem aquele guardiiiiinha pensa que é?
Não perguntei o desfecho do imbróglio na portaria. O fato que a senhora estava, ali, em minha frente. Uma mistura de Sinhozinho Malta com Viúva Porcina.
- Fiiiiiilhooo! Meu amoooorrrrr! Vou lhe mostrar uma jóia com o meu feitio.
Revirou a bolsa até que encontrou a pulseira toda de ouro, com 24 pendentes em formatos de coração.
- Veja!! Não é um show essa pulseira? Eu que desenhei. São 24 pendentes de coração. Há 24 anos estou casada com o Nildo.
E com a ponta dos dedos polegar e indicador, os demais dedos levantados, colocou de volta os óculos na altura dos olhos. Solicitei a documentação e comecei a avaliar o show da pulseira.
- Viste o meu sobrenome? Só tem duas famílias em toda América Latina com esse sobrenome. A minha e uma família em Buenos Aires. Como é o destino das pessoas... duas famílias... e eu caio na brasileira! Podia estar no Café Tortoni, no Teatro Colón, Recoleta, Caminito... El Ateneo, mas não! Estou aqui no penhores. Até o túmulo da Evita é mais interessante que essa cidade.
Ela falava... falava... e eu parava de avaliar para anotar as frases da madame, pois a mulher era uma crônica em estado de êxtase, como havia pressentido. É evidente que errei a avaliação. Coloquei o valor da avaliação de R$ 1.800,00 no peso e tive que refazer o contrato. E ela, com todos os seus predicados, mandando verbo.
- Tragédia!! Claro que a gente tem pena. Quantas pessoas estão chorando a morte de amigos e parentes. A gente sente a morte de bichinhos de estimação, como não vamos ficar comovidos com essa tragédia com o avião.
E achei que ela iria desandar num pranto...
- Mas tragédia para mim e a fila do SUS. O senhor não acha? Ontem a minha empregada...
No momento em que ia fazer o teste na pedra de toque.
- Nãããããõoooo!!! O senhor não vai raspar a minha jóia. Ela é um show...
Não raspei.
Então. Ela olhando o carrinho em miniatura que um guri havia esquecido em cima do guichê.
- Para que serve esse carrinho?
Eu tentei responder que um gu... ri... zi...
- Eu adoro carros. Tem um Karmanguia vermelho na cidade que é um show. Um show. Um show. Um shoooooowwwww. Não sei quem é o dono, mas eu fico suspirando quando ele passa. Meu marido tem uma camioneta importada, mas eu gosto mesmo é de Karmanguia vermelho.
... ele es... que... ceu.
- Eu adoro carro antigo. Adoro tudo que é antigo. Coisa velha é comigo mesmo. Acho que é por isso que eu casei com o Evanildo. Sabe, o Nildo vai fazer 87 anos. Tem uma diferença entre nós de quase 50 anos. Mas o Nildo é espada. E é show também. O Nildo é uma jóia.
- Pronto a senhora vai levar R$ 1.390,00.
- Óóóótimooo!! Óóóótimooo!! Óóóótimooo!! Meu fiiiiiilhooo!! E agora eu vou para os outros bancos pagar os boletos das minhas jóias. Tudo Shopping Brasil e Medalhão Persa.
Levantou-se, girou 360° agora no sentido horário, num imaginário eixo de rotação, com os dedos polegar e indicador, os demais levantados, baixou os óculos até a ponta do nariz.
- Tchau meu fiiiiilhoo!! Meu queridiiiinho!!
Girou mais 180° e se foi com o nariz empinado, um esquilo enrolado no pescoço e um cachorro à tira-colo.
E eu fiquei anotando mentalmente as frases que havia perdido e imaginando por onde começar a procura em caso de diferença de caixa no final do dia.

Um comentário:

Carol disse...

"Uma crônica ambulante vem em minha direção" há há há... estou me divertindo mais no meu trabalho depois de ler suas crônicas...é cada figura que aparece...Parabéns por mais uma excelente crônica.