segunda-feira, 7 de maio de 2012

A beata torcedora do Periquito [*]


Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Chegou em absoluto silêncio. Seus lábios mexiam fervorosamente sem a emissão de som e seus olhos, ora miravam o teto das dependências do penhor, ora o piso.
Após esses breves momentos de meditação, puxou de uma sacola das Casas Eny a imagem da Nossa Senhora Medianeira, deu um beijo e colocou em cima do guichê.
– Ela é minha protetora – completou, sentou-se e sorriu.
A tarde não era muito fria, mas aquela senhora estava extremamente agasalhada. Por cima de todas as blusas de lã uma enorme japona.
– Eu só trouxe o... – levantou-se.
Tentava, incessantemente, colocar a mão por sobre as golas das blusas. Era uma seção de contorcionismo na tentativa de acessar o documento tão bem-guardado sob o sutiã.
– Eu só trouxe o... – repetiu e sentou.
E cada vez mais se abraçava num esforço desesperado de colocar a mão por dentro das roupas. Estava de frente para mim, e de costas para uma plateia de umas dez pessoas. A Santa abençoava o espetáculo.
– Eu só trouxe o... – levantou-se novamente.
– CPF – eu disse já meio ansioso com a indefinição daquela cena.
Então, ela começou a desabotoar a japona e mais alguns casaquinhos de lã. Por debaixo dos casacos aparecia a camiseta comemorativa do centenário do Gandense. Tirou um rosário – um rosário verde e branco –, e colocou em cima do guichê. No momento seguinte um saquinho com umas moedas e cédulas de reais. Por fim, um chaveirinho e um adesivo de sócio centenário do Riograndense Futebol Clube.
– Periquito. Minha paixão! Um século de futebol. Vice-campeão gaúcho de 1921 – falou mostrando para mim e para todos os presentes no penhor. E continuou. – Eu só trouxe a... – permanecendo em pé.
– Renovação – falei disfarçando minha ansiedade.
– Renovação. Como é que o senhor adivinhou? Tá aqui...
A data eu consegui ler: janeiro de 2005. Por sorte alguém havia escrito o CPF no verso do que outrora tinha sido um documento de caixa.  
– Eu quero resgatar amanhã. Vou ao baile do Centenário do Periquito lá no ATC.  E quero estar bem emperiquitada – e deu uma gostosa gargalhada. – Veja quanto dá e coloque num papelzinho. Aí da Caixa.
Fiz como o solicitado.
Colocou o papelzinho e a antiga renovação no mesmo lugar de antes e começou a se abotoar. Segundo ato do espetáculo de contorcionismo. Misturou algumas contas a pagar com outros papeis e a carteira de identidade. Ainda balbuciou umas Ave-Marias.
Pegou a Santa de cima do guichê e pediu para que eu lesse o que estava escrito no verso da imagem. Lógico. O Pai Nosso. Mas poderia ser o Hino do Riograndense – pensei.
Fez o sinal da cruz virou-se levantou as mãos para o céu, ou para o teto, sei lá, e se foi meio desajeitada.
Em cima do guichê ficou o chaveirinho. Na próxima renovação eu devolvo, mas posso decidir que foi um presente da Santa pela santa paciência. Guardei o chaveirinho do Periquito. E fiquei imaginando o que a velhota iria fazer no baile do centenário do Riograndense.

[*] Crônica publicada no jornal A Razão no dia 07.05.2012.
Centenário do Riograndense Futebol Clube.