Chegou em absoluto silêncio. Seus
lábios mexiam fervorosamente sem a emissão de som e seus olhos, ora miravam o
teto das dependências do penhor, ora o piso.
Após esses breves momentos de
meditação, puxou de uma sacola das Casas Eny a imagem da Nossa Senhora
Medianeira, deu um beijo e colocou em cima do guichê.
– Ela é minha protetora –
completou, sentou-se e sorriu.
A tarde não era muito fria, mas
aquela senhora estava extremamente agasalhada. Por cima de todas as blusas de
lã uma enorme japona.
– Eu só trouxe o... –
levantou-se.
Tentava, incessantemente, colocar
a mão por sobre as golas das blusas. Era uma seção de contorcionismo na
tentativa de acessar o documento tão bem-guardado sob o sutiã.
– Eu só trouxe o... – repetiu e
sentou.
E cada vez mais se abraçava num
esforço desesperado de colocar a mão por dentro das roupas. Estava de frente
para mim, e de costas para uma plateia de umas dez pessoas. A Santa abençoava o
espetáculo.
– Eu só trouxe o... – levantou-se
novamente.
– CPF – eu disse já meio ansioso
com a indefinição daquela cena.
Então, ela começou a desabotoar a
japona e mais alguns casaquinhos de lã. Por debaixo dos casacos aparecia a
camiseta comemorativa do centenário do Gandense. Tirou um rosário – um rosário
verde e branco –, e colocou em cima do guichê. No momento seguinte um saquinho
com umas moedas e cédulas de reais. Por fim, um chaveirinho e um adesivo de
sócio centenário do Riograndense Futebol Clube.
– Periquito. Minha
paixão! Um século de futebol. Vice-campeão gaúcho de 1921 – falou mostrando
para mim e para todos os presentes no penhor. E continuou. – Eu só trouxe a... –
permanecendo em pé.
– Renovação – falei disfarçando
minha ansiedade.
– Renovação. Como é que o senhor
adivinhou? Tá aqui...
A data eu consegui ler: janeiro
de 2005. Por sorte alguém havia escrito o CPF no verso do que outrora tinha
sido um documento de caixa.
– Eu quero resgatar amanhã. Vou ao
baile do Centenário do Periquito lá no ATC. E quero estar bem emperiquitada – e deu uma
gostosa gargalhada. – Veja quanto dá e coloque num papelzinho. Aí da Caixa.
Fiz como o solicitado.
Colocou o papelzinho e a antiga renovação
no mesmo lugar de antes e começou a se abotoar. Segundo ato do espetáculo de
contorcionismo. Misturou algumas contas a pagar com outros papeis e a carteira
de identidade. Ainda balbuciou umas Ave-Marias.
Pegou a Santa de cima do guichê e
pediu para que eu lesse o que estava escrito no verso da imagem. Lógico. O Pai
Nosso. Mas poderia ser o Hino do Riograndense – pensei.
Fez o sinal da cruz virou-se levantou
as mãos para o céu, ou para o teto, sei lá, e se foi meio desajeitada.
Em cima do guichê ficou o
chaveirinho. Na próxima renovação eu devolvo, mas posso decidir que foi um
presente da Santa pela santa paciência. Guardei o chaveirinho do Periquito. E
fiquei imaginando o que a velhota iria fazer no baile do centenário do
Riograndense.
[*] Crônica publicada no jornal A
Razão no dia 07.05.2012.
Centenário do Riograndense Futebol
Clube.
Um comentário:
Muito bom!
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