sexta-feira, 4 de maio de 2012

Quando estou vivo, eu apareço

Athos Ronaldo Miralha da Cunha

“Quando estou vivo, eu apareço”. Penhor também é filosofia! Foi a conclusão que tirei diante daquela frase.
O mutuário Sr. João Ssó tem contratos de penhor que remontam ao século passado. O mais antigo deles é de junho de 1997. Cabe salientar que João Ssó é uma pessoa que raramente anda só. É uma das pessoas mais longevas do penhor – tanto em contratos como em idade – perdendo, apenas, para um coronel do Exército e um tenente da Brigada que estão beirando aos 100 anos. João Ssó bate orelhas com um antigo e conhecido cabeleireiro da cidade, ambos na casa dos noventa e picos. O velhinho sempre vinha acompanhado de um dos filhos ou netos para fazer suas renovações. Em dado momento o senhor Ssó não veio mais. Um dos filhos ficou com a incumbência de vir fazer as renovações dos contratos. Joao Ssó ficava em casa, só na companhia de suas saudades. Tinha muita indisposição para sair. Faltava-lhe ar e o coração já não era mais o mesmo. E aquela maldita hérnia de disco.
Nessa semana, no entanto, para surpresa do penhor, eis que o senhor Ssó aparece solito no más no penhor. Veio fazer suas renovações e um contrato novo. Penhorou um Patek Philippe Gondolo. Uma herança de família do velho pai José Ssó.
– Olha só, quem está chegando... Seu João Ssó. Prazer vê-lo alegre e retumbante – falei em alto e bom som, saudando o velho conhecido.  
– Quando estou vivo, eu apareço – brincou em resposta.
E a frase do sorridente e quase centenário mutuário me colocou pensativo. Meditativo. Fiquei martelando aquelas palavras enquanto atendia o senhor Ssó.
“Quando estou vivo, eu apareço!”
Uma inspirada frase para quem está meio sumido e deseja se explicar com humor para os amigos. Uma adaptação ou releitura do adágio popular “quem é vivo sempre aparece”, mas, convenhamos, com muita mais profundidade. Mais filosófica e espirituosa.
Hoje, uma pessoa idosa pode esperar muito da vida. Pode, ainda, realizar algumas façanhas. Mesmo que a façanha seja caminhar uma quadra no final de tarde. A vida de uma pessoa com mais de noventa anos supera algumas resistências, mas perde alguns suportes. Morre e nasce a todo instante... e quando está vivo aparece.
Uma pessoa com mais de 90 anos morre para as coisas ruins e vive para as boas e felizes. Morre para as injúrias e vive para o silêncio reconfortante. A vida é vivida intensamente nos mínimos detalhes mesmo que esses detalhes sejam apenas algumas horas de felicidade num dia de 24 horas, mas deve ser morrida intensamente nos detalhes sórdidos, nos detalhes que não dão prazer. Aliás, todos nós morremos um pouco a cada dia para renascer logo adiante com mais vitalidade. Com mais audácia.
Talvez seja essa a intenção da frase do velho mutuário... estou vivo para as coisas boas. Morto para quem me atrapalha. Por isso o “quando estou vivo, eu apareço”.
Seu João Ssó é uma pessoa culta. Certa feita trouxe um violino Stradivarius. E tocou alguns acordes da nona sinfonia de Beethoven no recinto do penhor. Foi um dos momentos mais emocionantes do penhor. Sempre tem alguém para comentar sobre o velhinho do violino. E, hoje, estava ali em minha frente um velhinho que “quando está vivo, aparece”.
Terminei o atendimento e desejei uma boa semana.
– No mês que vem, no dia que estiver vivo, eu volto.
Enquanto guardava a papelada numa pasta completou.
– Quando a gente fica velho... a gente percebe a finitude da vida todos os dias. Mas eu posso dizer “confesso que vivi” – e ficou sorrindo.
– Pablo Neruda – completei. – Seu João, no mês que vem, quando estiver vivo, traga o violino.
Fez um sinal de positivo e saiu. 

2 comentários:

João Marcos Adede Y Castro disse...

Muito bom, como tudo que escreves.
Abraços

Unknown disse...

Caro colorado, como sempre muito bom, abraço, Vilson