“Quando estou
vivo, eu apareço”. Penhor também é filosofia! Foi a conclusão que tirei diante
daquela frase.
O mutuário Sr.
João Ssó tem contratos de penhor que remontam ao século passado. O mais antigo
deles é de junho de 1997. Cabe salientar que João Ssó é uma pessoa que raramente
anda só. É uma das pessoas mais longevas do penhor – tanto em contratos como em
idade – perdendo, apenas, para um coronel do Exército e um tenente da Brigada
que estão beirando aos 100 anos. João Ssó bate orelhas com um antigo e
conhecido cabeleireiro da cidade, ambos na casa dos noventa e picos. O velhinho
sempre vinha acompanhado de um dos filhos ou netos para fazer suas renovações. Em
dado momento o senhor Ssó não veio mais. Um dos filhos ficou com a incumbência de
vir fazer as renovações dos contratos. Joao Ssó ficava em casa, só na companhia
de suas saudades. Tinha muita indisposição para sair. Faltava-lhe ar e o coração
já não era mais o mesmo. E aquela maldita hérnia de disco.
Nessa semana, no
entanto, para surpresa do penhor, eis que o senhor Ssó aparece solito no más no penhor. Veio fazer suas
renovações e um contrato novo. Penhorou um Patek Philippe Gondolo. Uma herança de
família do velho pai José Ssó.
– Olha só, quem
está chegando... Seu João Ssó. Prazer vê-lo alegre e retumbante – falei em alto
e bom som, saudando o velho conhecido.
– Quando estou
vivo, eu apareço – brincou em resposta.
E a frase do
sorridente e quase centenário mutuário me colocou pensativo. Meditativo. Fiquei
martelando aquelas palavras enquanto atendia o senhor Ssó.
“Quando estou
vivo, eu apareço!”
Uma inspirada
frase para quem está meio sumido e deseja se explicar com humor para os amigos.
Uma adaptação ou releitura do adágio popular “quem é vivo sempre aparece”, mas,
convenhamos, com muita mais profundidade. Mais filosófica e espirituosa.

Uma pessoa com
mais de 90 anos morre para as coisas ruins e vive para as boas e felizes. Morre
para as injúrias e vive para o silêncio reconfortante. A vida é vivida
intensamente nos mínimos detalhes mesmo que esses detalhes sejam apenas algumas
horas de felicidade num dia de 24 horas, mas deve ser morrida intensamente nos
detalhes sórdidos, nos detalhes que não dão prazer. Aliás, todos nós morremos
um pouco a cada dia para renascer logo adiante com mais vitalidade. Com mais audácia.
Talvez seja essa
a intenção da frase do velho mutuário... estou vivo para as coisas boas. Morto
para quem me atrapalha. Por isso o “quando estou vivo, eu apareço”.
Seu João Ssó é
uma pessoa culta. Certa feita trouxe um violino Stradivarius. E tocou alguns
acordes da nona sinfonia de Beethoven no recinto do penhor. Foi um dos momentos mais emocionantes
do penhor. Sempre tem alguém para comentar sobre o velhinho do violino. E, hoje,
estava ali em minha frente um velhinho que “quando está vivo, aparece”.
Terminei o
atendimento e desejei uma boa semana.
– No mês que
vem, no dia que estiver vivo, eu volto.
Enquanto guardava
a papelada numa pasta completou.
– Quando a gente
fica velho... a gente percebe a finitude da vida todos os dias. Mas eu posso
dizer “confesso que vivi” – e ficou sorrindo.
– Pablo Neruda –
completei. – Seu João, no mês que vem, quando estiver vivo, traga o violino.
Fez um sinal de
positivo e saiu.
2 comentários:
Muito bom, como tudo que escreves.
Abraços
Caro colorado, como sempre muito bom, abraço, Vilson
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