sábado, 12 de maio de 2012

Meu velho foi embora


Athos Ronaldo Miralha da Cunha

A velhinha chegou muito triste ao guichê. E quando uma velhinha muito velhinha chega muito triste eu pressinto os acontecimentos. Condolência é a palavra que me vem à mente.
– Meu velho foi embora – falou e os olhos umedeceram.
Não podemos tirar conclusões apressadas, mas uma pessoa idosa fala “meu velho foi embora” e chora em sua frente, é lógico que imaginei: vou ter que encaminhar o seguro do velho que foi embora. O velho botou o pé no estribo. Mas fiquei na minha, pois não estava explícita, naquela conversa, a morte do velho. Ele, apenas, tinha ido embora.
– Uma pessoa nova... – comentei sem muita convicção, sem explicitar que eu achava que o velho tinha batido as botas.
– Setenta e quatro anos, Seu Penhor – ela me chamava de Seu Penhor.
– Muito jovem para ir embora com 74 anos – ainda sem a devida clareza de que o velho tinha ido embora.
– A gente vive muito bem. Tudo tranquilo, uma vida pacata com os filhos criados e chega um dia uma pessoa nos deixa.
Eu não falava a palavra morte e nem a velhinha. Eu por receio, ela, certamente, por trauma.
– É a lei da vida, chega um certo momento em que as pessoas vão embora – comentei.
Fiquei imaginando o casal que vinha sorridente, simpáticos, brincalhões fazer os pagamentos dos juros. Ambos torcedores fanáticos do tricolor. Sabiam de cor a escalação do Grêmio campeão do mundo – a tal Copa Toyota – no Japão. Sempre corria um flauta. Mas eram duas pessoas alegres e educadas. Tratavam-se como “meu velho” e “minha velha”. Era o típico casal que vive uma vida inteira juntos – feitos um para o outro –, mas, em dado momento um vai embora. Para os que ficam é triste. No penhor também, pois temos que encaminhar um processo à seguradora. E, às vezes, as pessoas choram copiosamente em nossa frente. É uma situação delicada. Constrangedora. Aí o avaliador vira um psicólogo de araque. 
– Primeiro ele foi para Cruz Alta...
“Opa” pensei, o velho não morreu.
...agora eles moram ali no Perpétuo Socorro.
Nossa! Expressões como cruz alta e perpétuo socorro, lembram cemitério. Logo ela deverá falar em jazigo.
– Dona Adolfinha – ela se chamava Adolfinha – juro que pensei que seu esposo estivesse morto. Afinal, a senhora estava chorando... o velho foi embora.
– Não, Seu Penhor! Eu estou chorando porque vou colocar todas as minhas joias, as nossas joias, e vou deixar ir a leilão. Vou pegar a grana e vou sofrer bem longe daqui – falou sorrindo.
– Mas o que houve com o seu marido?
– O sem-vergonha se enrabichou com uma sirigaita 30 anos mais nova que ele. Morou em Cruz Alta, a china é de lá, agora estão morando ali no Perpétuo Socorro.
– Mas que danadinho...
– Danadinho? Candidato a corno, isso que ele é.
– E eu achando que ele estivesse partido dessa para melhor.
– Para melhor eu é que vou partir. Vou penhorar nossas joias e vou viajar por esse mundo. Sabe aquele Vacheron Constantin Turbilhão? Vai a leilão. O diamante de dois quilates que foi da vovozinha dele? Vai a leilão. As 22 libras do século XIX? Vão a leilão – e abriu um sorriso vingativo.
– Não faça uma loucura dessas dona Adolfinha.
– Seu Penhor. Eu vou sofrer em Paris. Volto amanhã com mais uns colarzinhos que o futuro corno me deu. Bonjour, mon ami.
Levantou-se e saiu, de nariz empinado, rumo ao elevador.

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