terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Agente funerário

Parte I – Caixa Econômica Federal
Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Não lembro direito, mas era uma sexta-feira 13 de um agosto sem graça.
De repente, como por encanto, a tarde de Santa Maria tornou-se escura, nuvens negras fecharam o tempo e relâmpagos e trovadas alvorotaram os passantes. Correrias e passadas largas agitavam o Calçadão e a praça Saldanha Marinho.
Do alto do prédio da Caixa observamos as luzes do centro anunciando a noite que chegara mais cedo. Alguém comentou em adicional noturno, mas não dei muita importância.
O recinto do penhor estava vazio. Estou absorto lendo os editoriais do Conta Corrente quando um ser, que tinha todas as feições de um terráqueo, simplesmente surgiu diante de meu guichê.
- Boa noooooite! – falou com uma voz meio barítona, meio metálica.
- Boa... tarde. – respondi refazendo-me do susto.
Sinistro e misterioso o cidadão postava-se em minha frente. Usava um chapéu e luvas pretas e uma capa estilo Matrix. Ele não sorriu, mas eu percebi um brilho de metal nobre nos caninos.
Os instantes que antecederam a confecção do contrato de penhor foram travados com perguntas minhas e respostas monossilábicas ou com apenas uma única palavra do misterioso mutuário.
- Seus documentos por gentileza.
- Sim.
- Seu comprovante de residência.
- Não.
Mesmo assim resolvi fazer o seu cadastro. Estava curioso para ver o tipo de jóias.
- Sua profissão?
- Agente...
- De polícia?
- Funerááário.
- Agente funerário. – repliquei baixinho.
- Funeráááááário. - aquele vozeirão retumbou no recinto.
Não sei se foi impressão minha, mas o segundo funerário tinha o dobro de “a” do primeiro.
- Endereço? – também comecei a economizar as palavras.
- Bozano.
- Número?
- Meia, meia, meia.
- Apartamento?
- Meia, meia.
- Cidade?
- Santa. – para quem não sabe: Santa Maria.
- O senhor trouxe as jóias?
- Trouxe.
Ficamos por alguns segundos sem falar. Eu esperando as jóias e ele, certamente, esperando mais uma pergunta. Mas essa eu iria ganhar. Não perguntei pelas jóias. Fiquei aguardando. Olhando para ele com uma cara de taxo.
- Ah! – botou a mão no bolso e tirou um saquinho.
Despejou sobre o guichê 24 caveirinhas de ouro com dois diamantes de 15 pontos nos olhos.
Então, comecei a pesar e medir os diamantes. Quando fui explicar o valor a ser recebido ele falou.
- A cruuuz. – novamente, falou com uma voz meio barítona, meio metálica.
Eu havia esquecido uma cruz de ouro branco cravejada com esmeraldas.
- A cruz. – sussurrei.
- A cruuuuuuz.
Não sei se foi impressão minha, mas, novamente, a segunda cruz tinha o dobro de “u” da primeira.
Quando fui dizer o quanto levaria pelas caveiras e pela cruz ele argumentou.
- O morceeeeego. – com aquela voz de causar arrepio na espinha.
E, novamente, eu havia esquecido um raio dum morcego de ouro com olhos de rubi. Esse cara está de brincadeira comigo. As jóias, simplesmente, apareciam no balcão.
Antes de falar o valor verifiquei se não havia nada em cima do guichê para ser avaliado.
- O senhor vai depositar o dinheiro?
- Não. Vou levar para o Banco do Brasil. – essa foi a única frase dita pelo cidadão.
Entreguei o dinheiro. E o misterioso mutuário saiu lentamente. De repente virou-se e disse. – Boa nooooooite.
Nesse momento um estrondo de um trovão iluminou a praça e, imediatamente, uma chuvarada inundou o centro da cidade.


Parte II – Banco do Brasil
Raul Giovani Cezar Maxwell

Estava preparando-me para ir embora, estava no final do expediente externo quando olhei para fora, no exato momento em que ribombavam trovões no céu de Santa Maria. As nuvens trouxeram uma escuridão noturna quando estava apenas próximo às 16 horas. Olhei meu relógio procurando os ponteiros encostados no doze e no quatro, mas incrivelmente eles estavam ambos sobre o 12. Achei estranho. Algo mais estranho ainda estava por vir. Uma criatura estranha. A porta pareceu girar sem que ele a tocasse.
Sinistro e misterioso o cidadão postava-se em minha frente. Usava um chapéu e luvas pretas e uma capa estilo Matrix. Ele não sorriu, mas eu percebi um brilho de metal nobre nos caninos.
Olhei para os colegas, mas eles não pareciam ver o que eu via. É o treze, pensei, de agosto, sexta-feira. O cheiro de esgoto, que eu sentia, devia ser da enxurrada lá fora.
Então ele falou, lúgubre, com um hálito próximo a dois Cadenas:
- Boa Noooooooite!
- Boa - respondi idêntico julgando ser de brincadeira, apesar do calafrio provocado pelas vogais sibiladas e repetidas.
- Em que posso ajudá-lo? – eu ouvia o eco de nossas vozes devido ao silêncio sepulcral do restante da agência.
- Queeeerooo liiiiquidaaaar... - começou ele enquanto eu sentia latejar minha jugular.
Passei a mão no pescoço por instinto ao perceber os dentes pontiagudos e amarelados.
- Liquidar...?
- Um CeDeeeeCeeee – terminou consoante a minha frente
Não falei, mas pensei. Em seu caso CDC seria Caixão de Defunto Consignado. Sorri por dentro. Apesar de tudo não perderia a piada.
- Número da conta, por favor, e seu nome... – pedi.
- 66.666-6 Vlaaaad Karloooof – a voz parecia sair direto da garganta sem passar pela boca.
Calculei a dívida e me arrepiei novamente. Mais meia dúzia de seis.
Ele não esboçava reação.
- Por favor, o senhor pode ir depositar o valor no caixão. - falei rapidamente.
Percebi o ato falho e corrigi logo
-... No caixa.
Fiquei observando o seu deslocamento. Nada aparecia sob a capa longa que cobria todo seu corpo, aparentemente magro e ossudo, parecia flutuar. Fechei os olhos e os esfreguei para ver se não era um sonho. Quando os abri novamente ele já estava ali a minha frente de novo. Meu sangue gelou em todo meu corpo, menos na jugular. Ali, parecia ferver.
Ele me fitava e parecia agradecer o atendimento, quando tive uma idéia repentina.
- Posso tirar uma foto do senhor? Antes que ele respondesse puxei a máquina da gaveta e apertei o disparador. O flash se confundiu com o relâmpago na rua. Ele girou rápido como a se proteger do clarão, puxou a capa sobre os olhos e num átimo já estava na escuridão, sumindo por entre a locomotiva e a biblioteca. Outro piscar de olhos e a chuva parou e o dia voltou ao seu lugar.
O medo que me restou era que, ao revelar o filme, se revelasse que tudo não passou de uma ilusão de ótica, fruto do estresse de um final de sexta-feira. Treze de Agosto. Hoje, de estranho, apenas duas manchinhas roxas em meu pescoço.
A foto? A foto foi utilizada na campanha salarial 2007.

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