terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O penhor das latinhas


Uma sexta-feira tranqüila com a perspectiva de um vasto e ensolarado final de semana prolongado com o feriado na segunda-feira.
A última cliente do dia era uma senhora, aparentava ter mais de 80 anos. Baixinha, curvada e tinha o cabelo cuidadosamente bem arrumado, com um preto intenso e uma maquiagem exagerada. Usava na lapela de seu casaco um camafeu. Com a maior calma do mundo, e lentamente, dirigiu-se ao meu guichê. Portava três ou quatro volumosas sacolas plásticas de mercado e uma bolsa com a estampa de uma zebra.
Eu já estava com o pensamento na caipirinha de vodka após o expediente no “Ponto de Cinema”. Tamborilava e assoviava a música de Bob Dylan “Blowin’ In The Wind”.
Sentou-se em minha frente e começou a falar. Disse que precisava penhorar umas “coisinhas”, mas antes precisava me contar uma história. Com uma voz compassada que mal conseguia ouvir, começou sua narrativa.
- Meu marido morreu, há dois meses, com 99 anos. Que Deus o tenha! Mas, coitado, tava um caquinho. E ele queria chegar aos cento e doiiiissssssssssssssssssssssss. - e foi baixando a cabeça e eu pensei que ela estivesse esvaziando.
- Mas ele viveu bastante... aproveitou a vida. – acrescentei.
- Aproveitou até demais aquele sem-vergonha. – levantando-se abruptamente. E continuou. - Velho safado. O senhor não imagina o que o Arnaldo aprontou em vida. Sinto pena do diabo... pois é claro que ele está no inferno.
De repente ficou em silêncio. Baixou a cabeça, novamente, e quase sumiu do meu campo de visão.
- Mas como é mesmo que seu marido morreu? – perguntei.
- Vinte e um tiros. – acordando do seu breve repouso.
- O seu marido levou vinte e um tiros...
- Ele era tenente-coronel. Lutou na 2a Grande Guerra. Teve honras militares e foi saudado com vinte e um tiros pelos soldados do Exército. O velório foi muito bonito. Nem merecia aquele desgraçado. Enfim, que o demônio o tenha. Por mim, que queime nas labaredas profundas do inferno.
- É, mas foi uma bela homenagem.
- E sabe o que ele me deixou? Uma porcaria de uma pensão e uma sobrinha meio lelé. Sabe... problemas. – e apontava com o dedo indicador para a própria cabeça. – E como eu rezei para aquele infeliz ir embora. Foi, e foi tarde, e me deixou com uma louca varrida. Aí que eu queria chegar moço. Aquela doida quer que eu faça o penhor dessas coisas aqui. Ela quer comprar um vestido de noiva com o dinheiro desse penhor.
Colocou sobre o guichê, três sacos plásticos com latinhas vazias de cervejas para serem penhoradas na Caixa. Pasmo, eu fiquei sem o que dizer. Ela continuou.
- Eu sei que a Caixa não penhora latas, mas eu não posso contrariar a Deoclécia. Ela me obrigou a trazer as latas para vocês avaliarem. Aquela mulher é louca, ela bate em mim.
Lembrei-me daquela gostosa do Big Brother que dizia “ninguém merece”. E ainda por cima no final de uma sexta-feira véspera de feriadão. Como é que essa mulher passou pela porta giratória? E só latas de cerveja, nenhuma coca diet. Mas essa “véia” bebe! – pensei cá com os meus botões.
- Moço, eu quero que o senhor escreva isso num papel. – falou mais pausadamente que o normal. – “A Caixa não faz penhor de latas”. E assine e ponha o seu carimbo. Eu levo para ela, senão ela é capaz de me bater. Sabe! Ela tem a mão pesada.
Então escrevi.
“A Caixa Federal não faz penhor de latas de cerveja. Somente aceitamos jóias de ouro”. Assinei e coloquei meu carimbo.
- Tem que ter o carimbo da Caixa. Moço! Aqui não tem o carimbo da Caixa...
Peguei o carimbo de cruzamento de cheques e coloquei logo abaixo do meu.
- Pronto.
- Agora sim. Bom final de semana, moço.
E se foi curvadinha. Lentamente, arrastando os sacos com as latas vazias.
Ninguém merece...

Um comentário:

Unknown disse...

Se isso é verídico ou não, não importa, o que importa é que me deliciei com a leitura. Parabéns, pois foi tão real, e os comentários pessoais tão verdadeiros que me fizeram até voar prá dentro da história.
Parabéns!!!