domingo, 6 de janeiro de 2008

As abotoaduras do Conde *

No dia em que a Caixa comemorava os 145 anos, a temperatura ambiente estava insuportável e o ar condicionado da agência funcionava precariamente. Dona Alzira se aproxima do guichê, lentamente, pois os anos eram antigos para ela. Sorriu e sentou-se. Dona Alzira tinha as mãos trêmulas em virtude do Mal de Parkinson. Mas não se incomodava com seu infortúnio, inclusive, brincava com sua doença.
- Sabe moço, ontem eu vi na televisão que a Caixa está fazendo 145 anos. Acho que aqui no penhor só a Caixa é mais velha do que eu. Nessa festa de aniversário eu toco pandeiro. E levantou, sorrindo, sua trêmula mão.
- Mas Dona Alzira a senhora está bem...
- Enrugadinha filho, bem enrugadinha e mais pra lá do pra cá.
Revirou a bolsa em busca das jóias a serem penhoradas. O seu ventilador portátil fazia muito barulho e pouco vento. O suor corria-lhe pelo rosto.
- Comprei essa “josca” nos camelôs. – comentou contemplando o insuficiente ventilador que portava. E continuou. - Bolsa de mulher o senhor sabe como é... finalmente! Moço, eu preciso levar R$ 700,00. Tenho que pagar a matrícula da minha neta na faculdade. Ela cursa Medicina, vai ser médica de louco. Aliás, uma loucura é o que se gasta! A gente deveria viver 145 anos para pagar todas as contas. - sorriu, novamente, com o seu espirituoso trocadilho.
- A senhora vai precisar de um pouco mais de peso. Aproximadamente 35g de ouro.
- Então, vão-se as abotoaduras do Conde.
- Abotoaduras do Conde? – surpreendo-me com tamanha raridade no penhor. Não era todo dia que avaliávamos jóias oriundas da monarquia brasileira.
- Sim, possuo essas jóias há muito tempo, são bens de família. Essas coroas gravadas nas abotoaduras combinam com as coroas gravadas no anel e nos brincos da Condessa. São muito lindas. Vou contar-lhe a história. – pausadamente continuou. - O meu marido era bisneto do Conde e essas jóias vieram passando, de geração em geração, desde os tempos do Império e acabaram em minhas mãos... e nos penhores da Caixa. Ah! Se o Conde soubesse! Deve estar se revirando...
- E os brincos da Condessa? Eles não estão aqui. – indago.
- Bem, o Conde e a Condessa não tiveram filhas, somente filhos. Por casualidade do destino os brincos estão comigo e bem guardados lá em casa, como também não tenho filhas, certamente, acabarão nos penhores da Caixa. - soltou uma gostosa gargalhada e complementou. – E continuarão nos penhores por mais 145 anos.
Com a maior calma do mundo Dona Alzira prosseguiu com o relato familiar, a fila no recinto do penhor aumentava e impacientava alguns mutuários. Enquanto eu testava as abotoaduras do Conde, uma esbelta e formosa loira cruza as roliças e douradas pernas no banco em frente ao meu guichê e, por alguns segundos, me desconcentra.
- Existe um quadro do dito cujo no departamento de Biologia da Universidade. Eu que coloquei na parede. – complementou.
Dona Alzira contou que o Conde não era biólogo e quando trabalhava na Universidade era professora do Departamento de Biologia. Dava aulas na disciplina de fitologia. O quadro estava jogado em um canto do laboratório, como era uma moldura bonita e uma pintura antiga, resolveu colocar no hall do Centro. O quadro do Conde estava no prédio porque o Conde era bisavô do seu marido e o seu amado sogro era muito amigo de um antigo diretor do Centro de Ciências Naturais.
- Filho, eu trabalhei uma vida inteira naquele prédio com o Conde olhando e fiscalizando o vaivém dos alunos e professores. Não gostava daquele olhar penetrante da pintura e daquela pose de almofadinha. Tinha uma costeleta que o Menem copiou e uma calvície igual a do Kojak. Você lembra do Kojak? O detetive? Ninguém mais lembra do Kojak. Sabe, o quadro do Conde não está mais lá. O senhor não imagina o que funciona, hoje, próximo do local onde estava o almofadinha?
- Não faço a menor idéia.
- O posto de atendimento da Caixa Econômica Federal. E se botarem um penhor lá eu penhoro as jóias do Conde.
Sorriu longamente e levantou a mão trêmula. Fez um sinal de resignação com a cabeça e baixou o braço.
- Moço, vai demorar muito? Que droga de ventilador!

* 1º lugar no concurso de crônicas Fenae 2007

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